24 dezembro 2009

Feliz Ano Velho

Veja o lado positivo das crises, ainda que renais. Falo das renas do bom velhinho, evidentemente. Não me refiro ao Oscar Niemeyer, mas ao outro. Também não é o Levy-Strauss, minha senhora. Deixa pra lá.
O que eu queria dizer é que nos idos e vividos tempos, reunião de Natal era um desfile de esbanjamento, no que diz com os infalíveis presentes. O convidado A vinha com cinco pacotes, que distribuía a B, C, E e F. Epa! Faltou um. B dava presente a A, C, D, E e F. C dava presente a D, E, F, A e B e assim seguia a ciranda. Você ia pra casa carregando quatro ou cinco LPs, se fosse do sexo masculino. Se mulher, eram duas ou três caixas de pó-de-arroz. Ou de perfume. Na certa, Royal Briar, “o perfume que deixa saudade”, como se dizia na Rádio São Paulo.
Com a crise (falo daquela longínqua), inventou-se o “amigo secreto”. O convidado A dá presente a B; B dá presente a C; C dá presente a D e assim seguia a roda, com visível economia para todos.
Com o atual crack da bolsa, batizado sub-prime, que mostrou que a economia não estava nas mãos de craques, eu acabo de propor uma revisão do instituto do “amigo secreto”, inspirado no funcionamento das bolsas de valores. A coisa funcionou assim: em lugar de presentes concretos (vale dizer, CDs e perfume da Boticário), presentes virtuais. Secreto não será mais o amigo que recebe, mas o amigo que dá o presente.
Eu, como amigo secreto, daria a alguém um vale, feito no computador, pois sou bom no paintbrush: “Vale uma Maserati vermelha”, caso o sorteado fosse do sexo masculino; “Vale um colar de pérolas South Sea, com fecho de ouro branco e dois rubis”, se o sorteado fosse do sexo feminino. O resultado foi um estouro. Com a grande vantagem de, sendo secreto o amigo presenteador, o sorteado não terá como identificar-me. Ele, então, na segunda-feira mandará colocar num quadro o tal vale, ao lado dos quadros onde ele já colocou os cheques sem fundo que tem recebido ultimamente e as cautelas de ações que ele comprou no boom da bolsa, o que ele fez, aliás, sem a mais mínima cautela.
Já no que concerne ao final do atual inesquecível ano, sinceramente, eu gostaria de pagar o jantar do réveillon para todos os meus amigos. E certamente eu o faria se não tivesse havido o problema com a bolsa, que me afetou sensível, econômica e financeiramente. Desde que minha mulher escondeu a bolsa dela está difícil eu pagar as contas, que não param de vencer. Falo das minhas, é claro, cujo vencimento faz de mim um derrotado.
Tenho recorrido aos bancos, mas fico sentado na Praça da Sé o dia todo e nada de cair alguma moeda no meu furado chapéu. Mudo de banco e no shopping é ainda pior, pois o guarda me manda levantar e circular. Eu, nesta idade, girando minhas pás pra lá e pra cá!
Até pensei em bancar transportador de bebuns ao final de alguma festa do dia 31, mas não sei como estará, na tal data, o meu decrescente prestígio junto ao posto de gasolina da esquina, onde já sou atendido pelo trasista, pois o frentista nem me olha mais. É que ali ninguém mais acredita no meu cartão de crédito.
Segunda-feira próxima farei uma derradeira tentativa: procurarei a caixa. Colocarei uma carta na caixa do correio, esperando sensibilizar o idiota, digo, o samaritano que a receberá, com votos disto e mais aquilo, talvez até luzinhas piscando, e sugestão no sentido de que ele envie cópia a mais dez pessoas, cada uma me remetendo, ao depois, a gentileza de um substancioso óbolo. Difícil será encontrar dez pessoas que saibam o que é óbolo e o que é substancioso. Enfim, se até o Ronaldo encontrou quem acreditasse nele, por que não haverei de encontrar quem acredite em mim, que não estou tão gordo?
Bom mesmo foi 2007, quando éramos felizes e não sabíamos, ano digno de ser lembrado.
Desejo pás na terra a todos os homens de boa vontade e com saúde para limpar as ruas da cidade onde moram, especialmente considerando que os servidores municipais têm coisa mais importante para fazer. Greve, por exemplo. Eu não me candidato a esse trabalho porque as pás me deixam as mãos inchadas.
E adeus, pois minha inspiração foi-se.
 

10 dezembro 2009

Justiça

Há uma réstia de esperança em cada fato;
há um pouco de verdade no que é falso,
uma sombra que persegue o insensato.
Há um justo conduzido ao cadafalso.

Há uma causa que se vence injustamente:
uma chance de acertar se desperdiça.
Há uma lágrima no rosto do inocente;
uma luz vacila e morre na injustiça.

Há um justo condenando um inocente.
Há uma sombra de esperança em cada fato;
uma réstia de verdade na injustiça;
uma lágrima no rosto do que é falso.

Há uma chance de acertar injustamente,
uma luz a perseguir o insensato.
Há um justo, que vacila, e desperdiça
uma causa, que conduz ao cadafalso.

01 dezembro 2009

Presunções

"Não existe nenhum país no mundo que ofereça tamanha proteção (aos acusados). Portanto, se resolvermos politicamente – porque esta é uma decisão política que cabe à Corte Suprema decidir – que o réu só deve cumprir a pena depois de esgotados todos os recursos, ou seja, até o Recurso Extraordinário ser julgado por esta Corte, nós temos que assumir politicamente o ônus por essa decisão".

(Ministro Joaquim Barbosa, quando do julgamento do HC 84078/MG pelo STF)

Se você conhece alguma coisa da vida sabe que o criminoso é alguém que demonstrou não respeitar as regras de convivência social. Se conhece alguma coisa do Direito Penal certamente sabe que uma das finalidades da pena é proporcionar a ressocialização de quem cometeu um crime.

Imaginemos, porém, que você seja leigo em Direito. Você passa por uma avenida pela manhã e vê um automóvel inteiramente desfeito, com aqueles ferros retorcidos empilhados junto a um poste, sangue na calçada correspondendo ao passageiro que ali era transportado. Se você é um adulto que conhece as coisas naturais da vida, o que os juristas costumam chamar de illud quod plerumque accidit, aquilo que normalmente acontece, sabe que: a) automóveis não foram feitos para colidirem contra um poste, mas para trafegarem no chamado leito carroçável; b) os automóveis são construídos com material resistente e só se desmancham quando colidem contra um obstáculo, em alta velocidade. Aqueles dados à sua disposição permitirão que você chegue a algumas conclusões: a) o automóvel colidiu contra o poste por haver saído indevidamente do leito carroçável; b) os danos produzidos na colisão sugerem que ele estava trafegando em velocidade incompatível com a que seria razoável nas circunstâncias. Logo, concluirá você que esse motorista acaba de cometer um crime de trânsito, causando danos físicos ao passageiro ou sua morte.

Se, entretanto, ao seu lado estiver um advogado criminalista, ele bradará: “Enquanto não for comprovada a culpa desse motorista em um processo judicial, assegurando-se a ele ampla defesa, com a possibilidade de interpor todos os recursos previstos em lei, ele deve ser considerado inocente”.

Você então concluirá que os operadores do Direito são gozadores ou débeis mentais, pois, de acordo com o citado illud quod plerumque accidit, a presunção evidente, decorrente daquilo que ali está exposto, é no sentido de que o motorista foi imprudente, ao imprimir velocidade inadequada ao veículo, e imperito, ao deixar o automóvel desgovernar-se. Logo, a menos que ele justifique cabalmente sua conduta, a presunção será de culpa, não de inocência, até porque o fato se passou na madrugada e não havia qualquer testemunha presencial. O tal advogado, ao ouvir isso, lhe entregará um cartão de visitas. “Não saia à rua sem ele”, dirá a você, com um sorriso de mofa no rosto.

Imaginemos agora que você more num prédio de apartamentos, no qual moram várias famílias, cujas crianças costumam brincar num play ground situado nos fundos do terreno. No terceiro andar mora um rapaz, dono do apartamento, cujo quarto tem a janela voltada para o tal play ground. Ele encontra-se em gozo de férias e, por isso, pretendia dormir até mais tarde, o que o barulho da criançada não permite. Ele então empunha sua espingarda de caça e vai abatendo, uma a uma, as perturbadoras crianças, como se estivesse em Columbine.

Ele vem a ser preso, é lavrado o auto de prisão em flagrante e arbitrada fiança, pois ele é primário, tem residência fixa e emprego. Paga a fiança, ele é solto, voltando para casa.

Vamos dramatizar ainda mais: uma das crianças mortas era seu único filho. Como você se sentiria cruzando diariamente com aquele vizinho no corredor do edifício ou subindo com ele no mesmo elevador? Que idéias lhe viriam à mente?

Oferecida denúncia contra ele, o defensor arrola meia dúzia de testemunhas, dentre as quais Gisele Bündchen e Ricardo Izecson Santos Leite. Serão expedidas cartas rogatórias para ser tomado o depoimento da itinerante modelo onde quer que ela esteja desfilando e para ser ouvido o tal rapaz, que atua no futebol da Europa sob o nome de Kaká. Anos depois, quando voltarem as cartas rogatórias devidamente cumpridas, a defensoria requererá que o jogador e a modelo sejam submetidos a acareação, cujo indeferimento caracterizaria cerceamento de defesa. Quanto tempo mais será necessário?

Imaginemos que um dia a instrução desse processo termine e sobrevenha uma sentença condenatória. Condenatória? Coisa nenhuma. Será uma sentença determinando que o réu seja submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. O acusado continuará a circular pelo edifício onde vocês dois moram, pois é primário e tem bons antecedentes. E continua sendo legalmente inocente.

A primeira providência da defensoria será apresentar um recurso de Embargos de Declaração, para que o juiz explique melhor algum trecho da sentença. Esse recurso será rejeitado ou acolhido, publicando-se o resultado meses depois.

Sobrevém então o recurso propriamente dito, que deverá ser apreciado pelo Tribunal de Justiça, recurso esse no qual a defensoria certamente argüirá umas tantas nulidades e pedirá a despronúncia do recorrente, como é de praxe. Os autos do processo irão à Procuradoria de Justiça, de onde retornarão no ano seguinte. Enquanto isso você continua a cruzar com o mesmo vizinho no corredor do edifício onde ambos residem.

Anos depois, o recurso será julgado, confirmando-se a decisão que mandara o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri. O Acórdão será então lavrado, assinado, registrado e publicado, o que exigirá uns tantos meses. A defensoria, então, apresentará recurso de Embargos de Declaração, para que seja esclarecido isto e mais aquilo. Meses depois os tais Embargos serão julgados, o respectivo Acórdão será lavrado, assinado, registrado e publicado, o que exigirá mais alguns meses. Enquanto isso você continua a cruzar com o recorrente no corredor do edifício onde ambos residem, pois ainda não é o caso de expedir-se mandado de prisão, já que o réu continua sendo legalmente inocente.

Agora a defensoria apresenta não apenas um, mas dois novos recursos. No primeiro, dito Recurso Especial, ela invocará violação de algum preceito constante de lei federal; no outro, dito Recurso Extraordinário, a defensoria alegará violação de algum preceito constitucional, coisa que qualquer rábula sabe fazer. Os autos irão novamente à Procuradoria de Justiça, de onde retornarão no ano seguinte, com pareceres sobre um e outro desses recursos. Eles serão então despachados pelo Presidente do Tribunal de Justiça que ou manda que o recurso seja enviado ao tribunal de Brasília competente para apreciá-lo, ou indefere o recurso. Do indeferimento caberá novo recurso, dito Agravo de Instrumento, que será apreciado por um Ministro de um Tribunal Superior, em Brasília, sabe-se lá quando. Em Brasília caberão tantos recursos de Embargos de Declaração quantos a imaginação e a criatividade do Advogado conseguirem criar. Quando algum deles for indeferido liminarmente, sob a alegação de ser meramente protelatório, sempre caberá o recurso de Agravo Regimental, cuja decisão também admite novos Embargos Declaratórios.

Enquanto isso você continua a cruzar no corredor do edifício, onde ambos ainda residem, com a pessoa que, anos atrás, quando os cabelos de tua esposa ainda não eram grisalhos e quando havia cabelos em tua cabeça, disparou contra crianças que faziam algazarra no play ground do edifício onde você e ele já viviam. Lembra-se?

Repare que até agora ele ainda não foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. Quando isso ocorrer e ele for condenado, finalmente ele será preso e começará a cumprir a pena. Certo? Errado. Ainda faltam ser interpostos muitos e muitos recursos.

Quando tiver sido definitivamente julgado, o tal rapaz, agora um respeitável senhor, casado e bem empregado, deverá deixar o emprego e a família para passar uns tempos atrás das grades. Uns anos mais e ele sairá de lá presumivelmente ressocializado.