25 fevereiro 2010

O que mais conta

Não a rosa, mas o gesto

Não o tapa - a indiferença

Não a mão, senão apoio

Não o beijo, mas o afeto

Não a nau, mas a viagem

Não o sol, porém a luz

Não o teto, mas o abrigo

Não a vida, mas o amor

Não a lua, mas a calma

Não o tempo, mas o instante

Não o abraço, mas a estima

Não a morte - a eternidade

08 fevereiro 2010

Sardinhas literárias

Tenho a impressão de que o autor da boutade é o Delfim Neto, que, aliás, foi embaixador do Brasil na França. Boutade é palavra do tempo em que se ouvia a Edith Piaf em discos de vinil, chamados bolachões, e que diziam girar à razão de 78 rotações por minuto, coisa que eu nunca fui conferir. A Edith foi aquela cantora que seria apontada como imitadora da Mireille Mathieu, se não tivesse nascido muito antes da Mireille, e cujo sobrenome, falo agora da Edith, era, na verdade, um apelido grosseiro pois o sobrenome pardal, aquele pássaro miudinho sem graça e sem cor que, ainda por cima, não canta, só poderia ter sido posto nela por alguém que a odiasse terrivelmente. Aliás, dizem seus biógrafos que ela nem precisava ter inimigos, pois foi simplesmente esquecida pelas parcas. A sua biografia cinematográfica, Oscar merecido para a intérprete, como é mesmo o nome dela?, não conta da missa a metade. E ela, a original Piaf, sempre a dizer que não se arrependia de nada que havia feito.

Na verdade, quem deveria arrepender-se seriam as parcas.

A história que o Delfim contava, há muitos quilos atrás, era a seguinte: o cidadão comprou, por R$ 7,00, uma lata de sardinha, que era vendida no varejo a R$ 10,00. Mostrou-a a um amigo, que a comprou por R$ 8,50. Cada um ganhou R$ 1,50 na transação. O dono da lata de sardinha revendeu-a por R$ 9,00, lucrando novamente. O novo comprador revendeu-a por R$ 9,50 e aumentou seu lucro. O derradeiro comprador resolveu abrir a lata e comer a sardinha. Descobriu que ela estava estragada e foi reclamar aos vendedores anteriores. Um deles, que era economista, explicou ao decepcionado comprador: “Você cometeu um erro ao abrir a lata, pois a sardinha não era para se comer, era apenas para ser vendida.”

O que o Delfim pretendia ensinar a seus alunos era como funciona o mercado de ações. Se os seus colegas norte-americanos tivessem prestado atenção às suas aulas, o american way of life ainda estaria sendo invejado pelo Sarkozy. Dizendo em bom português: a cow não teria ido para o swamp!

Mas não era de economia que eu pretendia falar hoje. Lembrei-me do Delfim porque tenho notado que há na Internet número enorme de sardinheiros. Explico-me: Quantos e-mails você recebe por dia? Quantos desses e-mails contêm alguma coisa que vale a pena ser vista? Quantos desses e-mails circulares, com elogio da velhice, crítica ao governo, oração para santos ou santas de quem você jamais havia ouvido falar, pensamento do Dalai Lama ou do Papa, fotografias das cavernas da Mongólia e coisas semelhantes ou ainda mais exóticas você passa adiante? Quanto tempo você gastaria para ver tudo isso que recebe? Se alguém me manda mais de dois e-mails no mesmo instante, deleto todos sem ler nenhum, com direito a pôr o nome do remetente no rol dos culpados.

Aí é que está: esse volume incalculável de informações internéticas não é para ser lido, mas apenas para ser passado adiante.

Certa ocasião o Vargas Llosa, não sei se já ouviu falar dele, veio a público, putíssimo da Silva, para negar a autoria de uma despedida que ele teria escrito, às vésperas de sua morte próxima. “O pior é que estou em excelente estado de saúde” arrematou ele. Aliás, nem sei bem se foi ele, pois isso me foi enviado pela Internet, por alguém cujo nome eu não guardei.

Já recebi reflexões espiritualizadas assinadas pelo Pablo Picasso, logo ele, que só sabia pintar coisas deformadas e apalpar mulheres, e mensagens psicografadas enviadas por ninguém menos do que o Mário Quintana, que, pelo jeito, ao passar para o lado de lá teria deixado do lado de cá a sua conhecida irreverência. Dia desses minha filha Patrícia recebeu uma baboseira qualquer assinada pelo Paulo Coelho. Boa advogada que é, não teve dúvida: foi ao site do homem e consultou se aquele insulto à inteligência do leitor seria um desserviço que ele estaria prestando à cultura nacional. Gentilmente a secretária do homem respondeu que aquilo não havia saído da cartola do Coelho.

Já recebi mensagens gentis informando o valor milionário da fazenda adquirida pelo filho de certo político, ou a dinheirama que sicrano tem depositada numa conta nas Ilhas Canalhas, ou por quanto o Ministro tal deu aquela famosa liminar. Quando o remetente merecia, eu lhe respondi solicitando que me desse mais informações a respeito da informação prestada, pois eu pretendia ingressar com representação junto ao Ministério Público e arrolaria o remetente como testemunha. Preciso dizer qual foi a reação?

Já houve quem elogiasse um poema meu. Não é que eu não mereça elogios pelos belos poemas que escrevo, muito pelo contrário. Ocorre que aquilo era um conto, não um poema. Tenho tentado mostrar aos leitores que a Internet abriu novas possibilidades para aqueles que se sentem inclinados à arte da escrita. Se o Machado molhava a ponta do lápis na língua enquanto pensava na frase de efeito que lançaria no papel almaço, temos hoje o recurso do hipertexto. Cheguei a incluir, provocativamente, cerca de 10 palavras-chave (tags) numa única crônica, remetendo o leitor a textos situados alhures, ligados (linkados) àquele. Apenas alguns poucos leitores deram-se conta da proposta. Publiquei algo homenageando uma garota extraordinária e poucos foram os leitores que falaram da Eliana.

O fato é que pouquíssimos internautas se utilizam desse recurso, a maioria ainda escrevendo como se não houvesse diferença substancial entre um computador e uma máquina de escrever. A possibilidade de uma oportuna ilustração ou um anexo complementar do texto nem sempre, lamentavelmente, são recursos utilizados pelos colaboradores.

Certamente virá alguém a dizer que o tempo é pouco para considerações mais longas sobre esta ou aquela obra. Alguém já confessou explicitamente que não havia tido tempo de rever o que havia escrito, o que, no limite, é um desrespeito ao provável leitor. Aliás, escrever não é acrescentar, mas cortar ou substituir palavras, ensinam os mestres. Eu mesmo confesso que gostaria de deter-me em análise mais demorada, mais crítica de certos trabalhos. Por vezes envio essas observações reservadamente ao autor da obra, apontando isto e recomendando aquilo. Há os que se ofendem, mas há também aqueles que se dispõem a prosseguir na discussão. E isso é bom para ambos.

Lembro que a palavra crítica, tanto quanto a palavra crise, provêm, segundo os bons dicionários, do grego, onde se referiam a julgamento. Quem está em crise deve julgar os prós e os contras, para melhor decidir que caminho tomar. Um crítico de arte não tem a finalidade de humilhar o autor da obra criticada, mas realçar os aspectos positivos e negativos que, a seu ver, a obra apresenta. Quando Monteiro Lobato se referiu à obra de Anita Malfatti, indagando se aquilo seria paranóia ou mistificação, ele estava sendo grosseiro, não crítico.

Todos nós, reconheço, corremos o risco de cometermos tais grosserias nas considerações que fazemos, mesmo ressalvando que o deselogio não se refere ao autor, mas à obra. Entretanto, com risco de expor-me a críticas, a crítica que aqui faço é, segundo estou convencido, por uma causa nobre: sugerir que cada um de nós se capacite do modo como gasta seu tempo diante do computador. Da mesma forma como não vale generalizar críticas à televisão, pelo descompromisso que ela geralmente apresenta em relação àquilo que nos parece o padrão ideal para a cultura de nossa gente, assim também podemos selecionar o tipo de conteúdo que estamos dispostos a ver no monitor de nosso computador, eliminando liminarmente as latas de sardinha.

Para encerrar: você gostou mais do Non, je ne regrette rien na voz da Piaf ou na da Mathieu?