30 agosto 2011

Minha casa



Minha casa é de remendos,
são tremendos seus galpões,
tão incômodos seus sóis,
suas luas giram lentas.

Minha casa sem paredes,
verdes campos que se espraiam;
onde há flores, não há frutos;
onde a gente aí tem paz.

Minha casa abandonada
e desleixada ao relento.
Quem visita ali não fica:
vai e deixa seus segredos.

Dormitório da saudade,
canta o vento umas berceuses
pra ninar quem não desperta.

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Meu amigo Ignácio Velez, venezuelano, assim transportou o poema para sua língua:

Mi casita

Es mi casa de remiendos
tan tremendos sus galpones,
tan incómodos sus soles
pues sus lunas giran lentas.

Es mi casa sin paredes,
verdes campos se desplayan;
donde hay flores y no frutos,
y la gente tiene paz.

Está ella abandonada
y así quedada al relente;
quién visita allí no queda:
sale y deja sus secretos.

Dormitorio de nostalgias,
canta el viento unas berceuses
pa’ arrullar a quién ya duerme.

Acho que o poema até ficou mais bonito.

28 agosto 2011

Os delatores invejosos



“Em 2009 o STF alterou sua jurisprudência com relação à possibilidade de cumprimento das penas logo depois da confirmação da sentença em segundo grau. Em 2009 isso mudou. Não concordei com essa posição e discordo dela até hoje.” (Ministra Ellen Gracie Northfleet, revista Veja, edição de 31/08/2011)

Lon Luvois Fuller, nascido com o século passado, tornou-se professor de Direito na Universidade de Harvard. Deixou um livrinho, que era um deesafio a seus alunos e que muitos estudantes brasileiros já foram instados a ler: “O caso dos exploradores de cavernas”. A hipótese por ele trazida no livro foi tornada realidade tempos depois, quando, havendo caído um avião com passageiros nos Andes, os sobreviventes passaram a alimentar-se com a carne dos falecidos. Como você agiria se lá estivesse?
Em outro livrinho, menos conhecido por aqui, Fuller inventa uma situação mais complexa: em certo país, o governo é assumido por determinado partido, que tem maioria absoluta no Poder Legislativo e muitos simpatizantes no Poder Judiciário. Ele poderia estar falando da Alemanha nazista, do México do século passado, da Cuba atual, da Venezuela ou do Brasil. Graças a esse poder, o tal partido faz aprovar leis curiosas, como aquela que exige dos cidadãos que, quando perderem seu documento de identidade, denunciem o fato às autoridades, em cinco dias, para cancelamento, evitando-se, assim, que alguém, contrário ao regime, se utilize desse documento para fins escusos. A desobediência a tal regra era sancionada com a pena de morte, a ser imposta num processo judicial, por estar em risco a segurança nacional.
Tal como aconteceu na Alemanha pós-nazismo, na Espanha pós-Franco e no Portugal pós-Salazar, com a morte do líder carismático e a eleição de novos governantes, aquelas leis foram revogadas. Ficou, porém, uma “herança maldita”: aqueles que se consideravam vítimas de leis injustas passaram a acionar o governo para pedir reparação dos danos sofridos e a punição daqueles que deram cumprimento a tais “leis injustas”, aí incluídos os juízes. No livro de Fuller, são consultados cinco membros do Legislativo, dando cada qual seu parecer sobre o assunto. Cabia aos alunos adotar uma dessas opiniões, refutando os argumentos das outras quatro.
O professor Dimitri Dimoulis, da Fundação Getúlio Vargas, vem de lançar a tradução do livro, acrescentando, por sua conta, a opinião de cinco juristas, tão fictícios como os deputados de Fuller, cada qual dando seu parecer sobre o tema. Ao finalizar o livro, Dimoulis recomenda a seus alunos: a partir da argumentação dos juristas, tome partido, aderindo a um dos pareceres. Mas, diz ele, “explique o porquê”.
E diz mais: “Defenda bem e detalhadamente a sua opinião. Só se esta for convincente a solução contará com o apoio dos demais”. O que me faz inventar um sexto jurista, o prof. Suarez, que pede licença para por sua colher de plástico nesse caldeirão de polenta.
Em primeiro lugar, quando se diz, como enfatiza o Prof. Satene,  que não podemos falar em “violação do direito” sem antes definirmos o que entendemos por direito, pois “todos usamos esse termo mas cada um entende algo diferente”, está-se a dizer que nenhuma definição de Direito logra dizer exatamente o que é aquilo que se busca definir. O que me faz lembrar do estudante de Teologia que, passeando pela praia, viu uma criança a fazer um buraco onde, segundo revelou ao futuro santo, pretendia enfiar toda a água do mar. Agostinho, esse o nome do seminarista, deu um tapa na nesta e limitou-se a exclamar “É isso!”, referindo-se à impossibilidade de o homem conceituar Deus.
“Putas quid est Jus?” poderemos indagar, parafraseando o santo. Acaso imaginas poder entender o que é o Direito? Falas em Justiça como se fosse possível ao homem equiparar-se a Deus que, justo embora, a mais não ser, consegue julgar-nos com tal benevolência que temos a certeza de estarmos longe da Geena. Sendo, por hipótese, absoluto e detentor de toda a verdade, a ponto de desafiar seu julgador, permite a nossa inteligência o atrevimento de tentarmos alcançá-la. Como pode?
“Quid est Veritas?” indaguemos a qualquer juiz e tudo o que ele nos dirá é: “É aquilo que ficar provado no processo.” Vejamos, então, uma historieta: alguém é processado criminalmente sob a acusação de haver furtado a bolsa de A, a caneta de B e o relógio de C. Condenado pelo juiz singular, apela ao tribunal, sendo seu recurso submetido, como é a regra, a três juízes. O primeiro juiz, relator do processo, reconhece que a prova demonstra apenas a ocorrência do furto da bolsa, devendo o apelante ser absolvido das demais acusações; o segundo juiz, revisor do processo, reconhece que a prova demonstra apenas a ocorrência do furto da caneta, devendo o apelante ser absolvido das demais acusações; e o terceiro juiz, vogal, como se diz no foro, reconhece que a prova demonstra apenas a ocorrência do furto do relógio, devendo o apelante ser absolvido das demais acusações. Quatro juízes chegam a esta verdade: ali está um ladrão. Ele, no entanto, deverá ser absolvido, pois nenhuma das três teses foi sufragada por, pelo menos, dois juízes do tribunal. Que verdade e essa?
Em segundo lugar, tenho também por inconsistentes os reclamos de minhas colegas do gênero feminino, como é de bom tom dizer hoje em dia. Se o caso sob julgamento alude apenas a homens é porque a hipótese versava sobre o comportamento de homens. O reclamo denuncia o complexo de inferioridade que tem a maioria das mulheres, incapazes de reconhecer as diferenças, físicas e psíquicas, existentes entre elas e os homens. Quem atribuiu ao casamento o nome de matrimônio (mater + munus) tinha em mente um fato social: com a união de um homem e uma mulher, é a ela que compete cuidar da prole e da casa. Ao homem compete obter os recursos para formar o patrimônio do casal (pater + munus). Isso, certamente, não foi inventado por uma só pessoa.
Por fim, last but not the least, tenho por risível a responsabilização, civil ou criminal, do homem que levou o marido de sua amante à morte. Se eu vir meu desafeto a atravessar a rua, certamente rezarei com todas as minhas forças a Deus pedindo-lhe que mande um caminhão em alta velocidade para tirar deste mundo aquele canalha. Se Deus me atender, acaso merecerei ser chamado de homicida? Eles que se entendam lá em cima (ou lá embaixo). Sendo Deus, por hipótese, o dono da vida, que nos empresta por prazo que só Ele conhece, se, naquele caso concreto, Ele a reivindicou manu militari, se assim posso dizer sem cometer heresia, certamente porque não confia nos nossos juízes, que culpa me cabe?
Tenho, Senhor Ministro, por equivocadas as conclusões de alguns deputados e alguns de meus colegas, exatamente porque partem de premissas inaceitáveis.
Para não alongar-me em demasia, digo que, a meu aviso, certos fatos sociais, embora produzidos por seres humanos, são apenas manifestações das forças da natureza, algo que as apólices de seguro chamam, atrevidamente, de “atos de Deus”. Um grupo de leões foge de um zoológico e caça pessoas, matando-as e matando, também, sua natural fome. Ondas do mar encapelam-se e invadem a praia num tsunami, matando gente e destruindo tudo o que encontram pela frente. Um doente mental empunha uma arma de fogo e mata, sem motivo objetivo algum, dezenas de pessoas. Um vulcão entra em erupção. Qual a providência judicial que restabelecerá a paz social quebrada por esses acontecimentos? Certamente nenhuma.
De outra parte, e para finalizar, qual a função do juiz criminal senão a de chamar para si o desejo de vingança diante de alguém que, mercê de seu atrevimento, causa danos a pessoas específicas ou ao conjunto dos moradores da sociedade? Ao menos é isso que as “pessoas de bem” esperam dele. Um psicopata, cuja insensibilidade ética (o que quer que seja isso) impede-lhe que tome consciência do mal que causa, por ação ou omissão, àqueles que com ele se relacionam, poderá ser impedido de assim agir? Ele tem escolha? Certamente não. O mesmo se diga com relação aos membros da classe política, que, como regra, confundem seus interesses particulares com os interesses da população que dizem representar. Se a finalidade da condenação criminal é a “ressocialização” dos criminosos, que medidas devem ser tomadas para que esses políticos abram mão de uma característica que parece ser-lhes própria?
O mesmo se diga dos arroubos patrióticos. Como é geralmente sabido, o hoje idolatrado Walt Disney era um patriota como tantos outros, que, por isso, não se negava a indicar ao senador Joseph McCarthy o nome de pessoas suspeitas de simpatizar com o comunismo. Muitos colegas dele perderam o emprego por isso. Durante a II guerra, os EUA tinham um espinho na garganta. Ou, melhor, dois: Getúlio Vargas, no Brasil, e Juán Domingo Perón, na Argentina. Ambos simpatizavam com o nazismo, valendo lembrar que, encerrada a guerra, um número enorme de nazistas fugiu para esses países, como Adolph Eichmann e Josef Menguele. Os EUA sempre procuraram cativar os países da América latina, desenvolvendo, para isso, o projeto da The Good Neighbor Policy, que criou e alimentou vários ditadores, cuja conduta jamais veio a ser questionada pelo alimentante. Naquela época (antes do fim da II Guerra Mundial), Disney foi chamado para ser um dos embaixadores desse estreitamento. Daí, por exemplo, o engajado filme "Alô Amigos". Os políticos não brincam em serviço.
Quando se diz que a possibilidade da pena de prisão inibe a prática de crimes faz-se uma afirmação que a realidade desmente. O criminoso cuja ação é descoberta, por força de mera falta de sorte, algo que os criminólogos chamam de “chiffre noir”, mesmo que venha a ser condenado e cumprir efetivamente a pena, na maioria dos casos não se “ressocializa”. Se for inteligente, na próxima vez procurará deixar menos rastros.
Em conclusão, tenho por absoluta perda de tempo voltarmos os olhos para o passado. Isso não elimina os efeitos de um tsunami nem traz de volta à vida quem daqui foi levado. É vivermos o presente, da melhor maneira que pudermos (o que quer que nos diga a Ética, a Religião ou a nossa consciência) e procurarmos criar condições para que os fatos desagradáveis do passado não se repitam.
Outrossim, a idéia de que, defendendo bem e detalhadamente a minha opinião e tornando convincente a solução proposta, contarei com o apoio dos demais juristas é também pura ingenuidade. O que a experiência mostra é que a vaidade, em tais discussões, fala mais alto, impedindo que a razão coteje com imparcialidade os argumentos opostos.
Sei que alguns dos meus colegas me chamarão de cínico. Eu prefiro que me chamem de pragmático.
            A propósito, permita-me Vossa Excelência, Senhor Ministro, uma pergunta final: é possível fechar a boca de um vulcão?

10 agosto 2011

Quem fiscaliza os fiscais?


         Como sabido de quase todos os operadores do Direito, o Supremo Tribunal Federal, na ADI 3367, relatada pelo Ministro Cézar Peluso, quando julgou pleito apresentado pela Associação dos Magistrados Brasileiros contra a Emenda Constitucional que criou o Conselho Nacional de Justiça, além de afirmar, irrespondivelmente, a constitucionalidade do CNJ, deixou certo que a competência daquele Conselho é “relativa apenas aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do Supremo Tribunal Federal”. Tautologicamente enfatizou que “o Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito”. Sintomaticamente, embora julgasse necessário afirmar e repetir a superioridade hierárquica do Supremo Tribunal, esqueceu-se de aclarar a quem compete julgar eventual deslize atribuído a membro daquela Corte Superior.
Realmente, segundo o art° 8° do Regimento Interno do STF, “compete ao Plenário e às Turmas, nos feitos de sua competência, (II) censurar ou advertir os (sic) juízes das instâncias inferiores e condená-los nas custas, sem prejuízo da competência do Conselho Nacional da Magistratura." Ou seja, nem mesmo o Plenário tem competência para impor sanção administrativa a ministro da Casa. Em outras palavras, a quem compete fiscalizar a conduta dos ministros da Suprema Corte?
De fato, a LOMAN, como é conhecida a lei complementar 35/79, dita Lei Orgânica da Magistratura Nacional, prevê, no art° 35, sem abrir qualquer exceção, serem deveres dos magistrados, qualquer seja o patamar em que estejam:

“I - Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício;
II - não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar;
III - determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem nos prazos legais;
IV - tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que os procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência.
V - residir na sede da Comarca salvo autorização do órgão disciplinar a que estiver subordinado;
VI - comparecer pontualmente à hora de iniciar-se o expediente ou a sessão, e não se ausentar injustificadamente antes de seu término;
VII - exercer assídua fiscalização sobre os subordinados, especialmente no que se refere à cobrança de custas e emolumentos, embora não haja reclamação das partes;
VIII - manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.”

Sendo isso assim, a quem compete fiscalizar se o ministro do STF mantém ou não conduta irrepreensível? Se comparece ou não pontualmente ao expediente? Se excede ou não injustificadamente os prazos para decidir ou despachar? Ao que parece, a ninguém. E tanto isso é assim que o índice do RISTF, quando se refere aos seus ministros, arrola todos os temas que lhes dizem respeito, aí não incluídas as palavras “dever” e “obrigação”. Ei-los:

Ministro do STF
– antiguidade: regulação (art° 17);
– apartes (art° 133, parágrafo único);
– arguição de suspeição (art° 278);
– assento: incompatibilidade (art° 18);
– assento no Plenário (art° 144);
– autor: pedido de vista (art° 134);
– composição do gabinete (art° 357);
– convocação nas férias (art° 78, § 3º);
– convocação nos recessos (art° 78, § 3º);
– direitos (art° 16);
– garantias (art. 16);
– impedimentos (art°s 277 e 287);
– incompatibilidade (art° 16);
– jurisdição nacional (art° 20);
– manifestação oral (art° 133);
– posse (art° 15);
– prazos (art° 111);
– prerrogativas (art° 16);
– Presidente do STF: Relator e Revisor (art° 75);
– Relator: atribuições (art° 21);
– Revisor (art° 24);
– suspeição (art° 277);
– transferência de Turma (art° 19).

No dia 02 de agosto último, deu entrada no Conselho Nacional de Justiça, protocolada sob o número 12.636, representação firmada por advogado, na qual, tendo como fato justificador a repercussão negativa causada pela ausência de Ministro do STF para participar de mera festividade social ocorrida no Exterior, quiçá com despesas pagas por advogado, que, notoriamente, freqüenta a Suprema Corte no interesse de sua clientela, era sugerido que aquele E. Conselho “editasse providências com vistas à preservação do respeito devido ao art° 37 da Constituição Federal”. Citou-se então o contido no acórdão da Suprema Corte, proferido na ADC 12/DF, sendo relator o pranteado Ministro Menezes Direito, no sentido de que, “dentro das atribuições do Conselho Nacional de Justiça está a de preservar os princípios que estão presentes no caput do art° 37 da Constituição. E um desses princípios é aquele relativo à moralidade”.
No corpo da representação, aludiu-se ao conhecido discurso proferido pelo Ministro Carlos Maximiliano quando se despediu do E. Supremo Tribunal Federal, onde ele, com toda franqueza, confessa: “O constante receio de aparecer em público em desacordo com as exigências do cargo pesa sobre mim como um rochedo: ao penetrar, por tolerância e com os meus em grill rooms de casinos  em réveillons espalhados por todo o mundo, eu, embora jamais indigitado como baluarte contra as atrações do pecado, experimento algo do constrangimento do seminarista que, por maldosos companheiros convidado para uma tertúlia de família, de súbito sofresse o envolvimento traiçoeiro da ruidosa alegria de venustas beldades livres de compromissos e opulentas de audácia”.
“Cabe, portanto, a esse E. Conselho definir se tal comportamento, que, como se vê do noticiário, a muitos se afigura absolutamente insólito, afeiçoa-se ou não aos princípios deontológicos previstos no mencionado art° 37 da Magna Carta” concluía a representação.
A secretaria do CNJ, entretanto, com apoio na Portaria n° CNJ/52, de 20 de abril de 2010, “decidiu” devolver a representação ao signatário, esquecida de que, ao dar-se por incompetente, a “autoridade judiciária” deve, por amor à instrumentalidade do processo, enviar a peça à autoridade que reputa competente. É o que diz o art° 122 da lei n° 5.869/73. Conhece?
Ou seja, delegou-se a um mero funcionário de secretaria a competência para “indeferir liminarmente” uma representação que menos não pretendia do que chamar a atenção daquele Conselho para um fato notório apto a desmoralizar o Judiciário, donde o cabimento do contido no art° 19, II, de seu Regimento Interno, que lhe atribui o poder de “zelar pela observância do art° 37 da Constituição Federal e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário”.
Em derradeiro caso, era de remeter-se a representação à Suprema Corte, para que ela definisse a quem incumbe fiscalizar os fiscais, coisa que a secretaria deixou de fazer.
Fica no ar uma pergunta: quem apuraria a veracidade de uma notícia dizendo que um desses ministros é proprietário de prostíbulo, como ocorre alhures?

02 agosto 2011

Equívocos vários



Uma jovem amiga minha reuniu-se com colegas de colégio e elas, todas já formadas em curso superior, puseram-se a falar de seus encantos e desencantos amorosos. As solteiras reclamando da escassez de homens na praça; as casadas reclamando da má qualidade do produto disponível no mercado. Uma delas, ao que consta, muito vistosa, juíza de Direito, não tinha de que reclamar: “Minha companheira é uma dona de casa de primeira linha.” Espanto geral. “Ela lava, passa e cozinha como poucas. Até minha mãe reconhece isso.” Ponto para minha amiga Berenice, essa Nélson Carneiro dos Pampas.
Aliás, a intolerância que ainda grassa em nossa sociedade, onde um casal de homens não pode abraçar-se na rua que correm o risco de ser espancados, talvez com perda de uma orelha na refrega, pesasse embora a desconhecida circunstância de serem pai e filho.
), exige que se mobilizem mais policiais do que seria necessário se fosse um encontro de torcedores de futebol. Pois lá está o Dr. Brandão, meu dileto amigo, como delegado de plantão, atendendo a uns e outros casos de rotina quando chegam eles. Dois rapazes, cuja vestimenta escandalosa não deixaria a menor dúvida a respeito de suas opções generais (a palavra da moda não é “gênero”, em lugar do surrado “sexo”?). Um deles dirige-se ao delegado: “Doutor, nóis é gay e queria...” O bem intencionado delegado, preocupado com a última flor do Lácio, qual um Bernard Shaw caboclo, corrige: “Nós somos, você quer dizer. Nós somos.” E o rapaz, dando um saltinho e batendo palmas: “Ai que bom! Então o senhor entende nóis.”
E já que mexi em casa de marimbondo, reconto o que já citei alhures e que vem a talho de foice agora, além de permitir-me falar da figura ímpar de um grande amigo.
Marco Antonio Monteiro, juiz dos mais sensíveis, notabilizou-se por vários mal-entendidos que produziu ou que com ele foram produzidos pelas parcas, que se prestam a entrar no anedotário, não fossem tais fatos coisa absolutamente verdadeira tal como narrado por ele próprio, quando podia fazê-lo, que, dentre as qualidades maiores que tem, está a de haver sido meu colega de escritório tanto quanto nosso terceiro sócio, o Ari Augusto Longo, logo que nos formamos os três e haver-me incentivado, o Marcão, para prestar exame de ingresso na Magistratura, coisa que ele mesmo só veio a fazer muitos anos depois. Nós ambos perdendo dinheiro em nome da vocação, que nosso escritório ia de vento em popa, diga-se.
Quando se submeteu ao chamado vestibular para Direito, não contando com o trânsito da capital de São Paulo, já naquele tempo caótico, e dependente de ônibus como tantos de nós, chegou atrasado ao exame oral, que, naquele tempo, havia isso sim senhora!, ouvindo do presidente da banca examinadora que esperasse até terminar a argüição do último aluno, quando resolveriam se ele seria inquirido ou não, o senhor aguarde! Terminada a oitiva dos alunos que haviam comparecido no horário, muitos dos quais permaneceram sadicamente na sala à espera da solução a ser dada ao caso do retardatário, ele foi chamado pela banca, cujo presidente se pôs a censurá-lo duramente. “Imagine se o senhor já fosse um advogado e comparecesse a uma audiência depois de ela ter terminado, que ocorreria com seu cliente? Diga, que ocorreria? É preciso desenvolver desde agora o senso de responsabilidade, o senhor não acha?”
O aluno, vendo que tudo estava perdido e, perdido por um perdido por cem, inventou uma explicação convincente para seu atraso. “Deu-se que eu me levantei muito nervoso por saber que seria examinado por Vossa Excelência, um professor sabidamente rigoroso, e com isso apertei em demasia a pasta de dente e praticamente esvaziei todo o tubo de pasta. Sabe lá o senhor o que é colocar toda aquela pasta de volta para dentro do tubinho?” O examinador olhou-o com olhos fuzilantes, mas o decano da banca, o Prof. Sampaio Dória, homem de fino humor, explodiu em uma sonora gargalhada e o Marco Antonio não só foi admitido a fazer o exame oral como foi aprovado e passou a cursar a faculdade do largo de São Francisco, onde, dentre outros, teve como mestre e professor de Direito Judiciário Civil, era assim mesmo que se falava naquele tempo, o José Antônio de Almeida Amazonas, que, em pleno exame oral, resolveu humilhá-lo: “O senhor, com esse nome, não deveria estudar Direito mas História”, ao que o Marco Antonio retrucou: “E o senhor, com esse nome, deveria lecionar Geografia”, encerrando-se o exame com risos de lado a lado.
 Ele, juiz, atendeu o réu, que era um notório homossexual que ganhava a vida fazendo o trottoir numa grande avenida da cidade sede da comarca e que havia sido condenado por alguma briga com um colega de profissão, assegurando-lhe a sentença o benefício do chamado sursis. O Marco Antonio, leitor emérito das reflexões do Pietro Ubaldi,  procurava, a cada visita do réu, convencer o homossexual a mudar de atividade, ocupando-se de algo mais condizente com a moral e os bons costumes, onde já se viu? até porque fazer o trottoir logo logo o traria de volta à prisão, sabido que é o risco que se corre nesses locais, o senhor não acha? e mais isto e mais aquilo e o condenado acabou por convencer-se de que o zeloso magistrado tinha toda razão, resolvendo mudar-se para outra comarca onde morava seu irmão, homem influente, que certamente lhe arranjaria emprego, talvez até mesmo como motorista dos sobrinhos, o que acabou por acontecer. Isso, porém, não durou muito tempo porque os meninos pediram ao pai que contratasse outro chofer eis que os colegas de escola das crianças, olha só que maldade, doutor Marcos,  caçoavam do jeito afeminado do motorista, que se despedia dos passageiros enviando-lhes beijinhos, veja o senhor, seu doutor, como é o preconceito! não fossem eles meus sobrinhos, que eu amo demais, demais mesmo, coisa que certamente eles não contaram aos colegas de escola, veja só o senhor! E eu agora estou de volta a esta comarca, onde vou voltar a fazer o trottoir, seja o que Deus quiser, ninguém quer contratar uma bicha escrachada como eu, doutor, diz ele dramático.
E se põe a chorar convulsivamente e o juiz procurando consolá-lo, mesmo porque aquele choro já estava a despertar a atenção de advogados e outros passantes, vá a gente imaginar o que estão eles a conversar! E o Marco Antonio procurando valorizar a atividade do homossexual, quem sabe se não é uma profissão assim tão repugnante como pensa nosso preconceito. Se ele prefere isso a um trabalho nos moldes tradicionais, tudo bem tudo bem, é um direito dele. “Mas me diga uma coisa: dá para você se manter com o que você ganha? quanto você cobra cada vez que sai com um cliente? pergunta ele. E o jovem, entendendo mal a curiosidade do bom e brasileiro juiz Magnaud, com um sorriso de gratidão no rosto já recomposto: “Ah, doutor, o senhor tem sido tão bonzinho comigo que para o senhor eu não cobro nada!”