26 outubro 2012

Voto sem vista



Senhor Presidente
Eminentes pares
Ouvi com a máxima atenção os votos divergentes dos ilustres relator e revisor no que diz com a fixação da pena cabível ao réu ora sob julgamento, cabendo-me opinar sobre eles.
Preliminarmente, peço vênia para repetir as palavras de um grande penalista brasileiro, o saudoso Heleno Fragoso, quando afirmava que é preferível ter más leis com bons juízes do que maus juízes para aplicarem leis boas, sendo certo que, como queria o emérito Glasson, “não basta que os juízes sejam honestos; é necessário que eles provem que o são.“ Ou, dito de outro modo, como o fez Warlomont, “a motivação não deve ser unicamente considerada como algo que dá confiança na pessoa do juiz, mas como um privilégio concedido a ele pelo legislador de justificar sua sentença diante de seus jurisdicionados”.  
Nosso Sidnei Benetti pondera que “a decisão realiza um silogismo perfeito cuja premissa maior é a lei e cuja premissa menor são os fatos, seguindo-se a extração da conclusão, que é a decisão judicial.” Mas adverte: “E assim realmente é. Mas muitas vezes a matéria não se exaure no exame da legislação, assim como, no sistema anglo-americano, a interpretação não estanca na análise dos precedentes”. Longe está isso de ser uma tarefa mecânica, diz ele. “A formação da decisão, em si, é ato aninhado nas profundezas do sistema psíquico do Juiz, cujas trilhas, nos casos realmente complexos, nem o próprio juiz possui meios de reconstituir”.
É esse amálgama de elementos tão díspares que constituirá o fundamento da decisão. “O silogismo jurídico objetivo em verdade toma corpo para o juiz especialmente no momento da concretização da decisão no escrito, na motivação, com a qual obedece ao disposto na Constituição Federal e nos Códigos de Processo, textos que, em verdade, apenas explicitam a necessidade de fundamentação inerente à etiologia de qualquer julgamento”, diz o mesmo autor, com sua autoridade de Ministro de um de nossos Egrégios Tribunais Superiores.
E por que isso deve ser assim? Porque, se “até os ditadores, nos regimes discricionários, sentem o imperativo de expor ao público as razões dos seus decretos, o que fazem, geralmente, antepondo-lhes consideranda justificativos”, como dizia o Ministro Mário Guimarães, com maior razão isso há de ocorrer em um regime democrático, em que os atos judiciais, tanto quanto os administrativos, emanam de um agente do Estado que recebe seus proventos não só para decidir desta ou daquela maneira, mas, principalmente, para dizer os motivos pelos quais decide desta e não daquela maneira, como exige a Constituição Federal no artigo 92, IX e X. E se ao prejudicado se assegura o direito de impugnar os fundamentos da decisão, como diz ela no artigo 5°, LV, como fazê-lo sem os conhecer? Como impugnar fundamentos meramente subjetivos?
Daí dizer o insigne Gaston Jèze: “Quando um agente público está obrigado, segundo a lei, a motivar seu ato, deve fazê-lo, sob pena de nulidade do ato. Assim, a ausência de motivos passa a ser um vício radical. Essa lacuna faz supor que o motivo determinante não é um motivo de interesse público”.
Além dessa suposição, há outra, igualmente relevante, segundo o já referido Mário Guimarães: “A fundamentação é que dá a prova de haver o juiz tomado conhecimento do processo. Ora, se não houve o estudo, ludibriou-se o princípio das duas instâncias, que assenta na vantagem de ser a causa examinada por juízes de hierarquias diferentes.”
No que diz com o presente processo, a lei penal não só exige que seja aplicada a pena adequada ao caso como que seja fundamentada adequadamente a fixação dela, demorando-se o julgador em três fases sucessivas, quando ele levará em conta vários critérios, indicados no artigo 59 do Código: “a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima.” “Na fixação da pena de multa”, diz o Código, “o juiz deve atender, principalmente, à situação econômica do réu.” Em face de tais elementos, pode-se, então, fugir do subjetivismo?
Se pudéssemos estabelecer uma escala da culpabilidade, considerando a culpa mínima de grau 1 e a culpa máxima de grau 10, quando saberíamos que determinado réu atingiu o grau 8 e não o grau 5 de culpa? Os olhares de Vossas Excelências, pulando sucessivamente do relator para o revisor já nos dão a resposta.
Como falarmos dos antecedentes do presente condenado? Nasceu ele de uma gravidez desejada? Os psicólogos, como sabemos, entendem ser tal antecedente fundamental para tentarem compreender a conduta de alguém, máxime se desviante. Era filho único, daqueles sempre mimados? Ou tinha vários irmãos, disputando com eles o carinho talvez escasso dos pais? Como foi sua infância? Que exemplos teve na juventude? Como foi sua iniciação sexual? Que escolas frequentou? Que empregos teve? Que funções exerceu? Nada disso foi trazido a seus votos por relator e revisor.
Fala-se, é verdade, que este réu já se envolveu com a polícia anteriormente. O que isso significa? Maus antecedentes? Ou esse envolvimento conduziu a uma sentença condenatória, ou a uma sentença absolutória, ou a sentença nenhuma. Se ainda não houve sentença, isso não pode ser considerado mau antecedente, pois ele não só é presumido inocente pela Constituição como pode até vir a ser absolvido por negação de autoria. Se foi absolvido, ainda que por carência de provas, continua inocente quanto a tal crime, não mais por mera presunção constitucional, mas por força de uma decisão judicial. Se foi condenado, isso também não pode ter influência nenhuma neste processo, pois a pena correspondente àquele processo foi lá fixada e não pode ser alterada para mais, o que ocorreria se aquela outra decisão fosse levada em consideração na fixação da pena deste.
Aliás, a chamada reincidência técnica, constante do Código Penal, é claramente inconstitucional pois o plus aqui aplicado sobre a pena base não decorreria dos fatos aqui julgados, mas dos fatos que culminaram na sentença condenatória anterior. Isso é violação do antiquíssimo “Ninguém pode ser processado duas vezes pelo mesmo fato”, que os de língua inglesa chamam princípio do “no double jeopardy”, oua procedural defence that forbids a defendant from being tried again on the same (or similar) charges following a legitimate acquittal or conviction”, que foi acolhido pelo International Covenant on Civil and Political Rights, assinado pelo Brasil e entrado em vigor aqui aos 24 de Abril 1992 (clique aqui), com força de emenda constitucional, a teor do contido no parágrafo 3° do artigo 5° de nossa Magna Carta, especialmente no que diz com o artigo 14, inciso 7, do mencionado Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Outrossim, que sabemos da conduta do réu? É bom vizinho? Maltrata seus empregados? Participa regularmente das reuniões de condomínio? Embriaga-se? Dá calote nos credores? Enfim, como se relaciona com a companheira, com os filhos e com os vizinhos? Não sabemos.
Algum psicólogo foi ouvido para nos indicar como é a personalidade do réu? É ele introvertido? Extrovertido? Tende à depressão? À euforia? Seu humor é bipolar? Se soubéssemos responder a essas indagações, isso nos levaria a aumentar a pena básica ou a diminuí-la? Nem relator nem revisor esclareceram isso.
Para não esgotar a paciência de Vossas Excelências passo para a pena de multa proposta por relator e revisor, cujos valores também não coincidem. Diz a lei que se deve levar em conta principalmente a situação econômica do réu. Quanto ganha ele em média por mês? Quais os seus gastos médios? De que se compõe o seu patrimônio? Quantas pessoas estão sob sua dependência econômica? Não tenho resposta para nenhuma dessas questões.
Sendo assim, ou peço vista dos autos, prolongando ainda mais o tempo já enorme da tramitação do processo, ou dou um voto na base do “em face do jeitão do condenado, fixo a pena em tantos anos, tantos meses e tantos dias”, ou, menos por justiça e mais por equidade, invoco o velho e revelho in dubio pro reo e, pragmaticamente, fixo a pena final no mínimo legal.
Aliás, por falar em equidade, figuremos que a turma julgadora fosse composta de 7 juízes e, desses, 2 absolvessem o réu. Os 5 restantes discutiriam qual a pena justa, pois se teria entendido que os juízes que o absolvem não podem “logicamente” fixar pena. Como aqui se disse, “quem absolve não impõe pena”. Sendo isso assim, figuremos que, enquanto 2 deles fixam a pena no mínimo, 3 fixam a pena no máximo. Destarte, pela “maioria lógica” de 3 votos, a turma julgadora, composta de 7 juízes, condenaria o réu a cumprir a pena máxima. Entretanto, se, estrategicamente, os juízes que haviam absolvido o réu resolverem mudar o voto, o que podem fazer até a proclamação do resultado final, para também condená-lo, certamente aderirão aos que fixam a pena no seu mínimo legal. Resultado: a turma, por sua verdadeira maioria de julgadores, imporia ao condenado a pena mínima. Eis o paradoxo: se dois juízes da turma absolvessem o réu, ele receberia a pena máxima; se todos os membros da turma o condenassem (o que, logicamente, é mais grave do que absolver), ele receberia a pena mínima.
E aproveito o ensejo para deixar o meu protesto no que diz com a competência originária deste Tribunal para julgar processos criminais: nós aqui não chegamos ao mais alto grau da Magistratura para estarmos a brincar de juízes originais. Nossa função social deve ser, antes e acima de tudo, a de concretizarmos os preceitos constitucionais, o que estamos deixando de fazer ao longo deste famigerado processo, com prejuízo enorme a número incalculável de pessoas, ao perdermos nosso tempo em análise de provas e cálculos matemáticos, operações que gritantemente refogem de nosso carisma institucional, enquanto se acumulam na secretaria recursos e mais recursos que só serão julgados quando este terminar de ser julgado. Até porque, a meu enfoque, o contido no artigo 102, letras b e c, é incompatível com o contido no parágrafo 3° do artigo 5° da Constituição Federal, implantado em 2004.
                                    É como voto.


23 outubro 2012

Livre arbítrio e predestinação


Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes e inofensivos como as pombas.” (Mateus 10:16)
“A aparente oposição irreconciliável entre liberdade e destino vem determinando as condutas e guiando os pensamentos dos homens deesde os tempos mais remetos.” (Rollo May, Liberdade e Destino)
 

               Eu poderia começar propondo uma indagação a meus leitores, mas deixo de fazê-lo porque ao longo desse tempo de convivência tenho notado que a grande maioria deles prefere manter-se à distância, mesmo quando o assunto seja, a meu ver, de relevância geral. Já comecei, lá se vão alguns anos, um texto dizendo que, “pretendendo escrever um livro sobre a felicidade, indaguei de vários amigos se eles se consideram felizes e o que entendem por isso. (clique aqui). Era claramente um convite para que o leitor se manifestasse sobre o tema, até porque não haverá ninguém num grupo social que alguma vez não se tenha perguntado isso. Quantas pessoas aderiram ao convite? Você tem como sabê-lo: basta acionar o sistema de “busca” do Migalhas. Mas, falando francamente, você irá fazê-lo? É claro que não. Quem perderia tempo tentando saber o que as pessoas pensam sobre a felicidade?
Quando tentei publicar o “Ninguém sofre porque quer” (clique aqui), enviei o texto a uma de nossas grandes editoras. Depois de algum tempo, ela, gentilmente, me devolveu os chamados “originais” do livro com uma observação curiosa: deixaremos de publicá-lo porque não sabemos como classificá-lo, pois é livro de auto-ajuda só na aparência. Tive ímpetos de escrever à editora indagando: “que vocês entendem por auto-ajuda?”
Leio constantemente, desde que me alfabetizei, mas, quando apresentei um quadro da chamada “síndrome do pânico”, lá se vão quarenta anos, cujo gatilho foi o lamentável estado da comarca para onde eu havia sido promovido “para restabelecer o prestígio da justiça”, segundo palavras textuais do desembargador Márcio Martins Ferreira, Presidente do Tribunal, os livros de auto-ajuda que me deram para superar o mal (lembro-me de um deles, o “Controle mental e espiritual”, do Narciso Irala) pouco me ajudaram. Foi preciso que o Paulo Gaudêncio me dissesse “você tem apenas dois problemas para serem resolvidos: um agudo e um crônico” para que eu tomasse consciência da gravidade da coisa, resolvesse tratar-me e voltar, depois de algum tempo, às minhas atividades normais. O que nos traz algumas indagações: se meu estado mental era tão precário que eu não conseguia sair à rua sozinho nem conseguia ler com proveito uma única página de livro, como então me decidi a procurar aquele médico e aceitar submeter-me a sessões semanais de psicoterapia que, naquele tempo, não era a coisa charmosa que é hoje? Como tomei conhecimento da existência dele, se aquele assunto, naquela época, era tabu?
Estamos, já se vê, nos domínios do confronto entre livre escolha e predestinação.
Espero que você não tenha passado por experiência tão dramática, mas certamente passou por esta: a escolha de uma casa para morar. Em primeiro lugar, casa ou apartamento? Qual o bairro mais conveniente? Qual o custo?
O corretor lhe indica três apartamentos no bairro escolhido por você. Gol do livre arbítrio. Você, por sua livre vontade (vontade que não é espontânea não é livre, concorda?), rejeita o primeiro por ser mal iluminado, o segundo por estar sob a rota de aviões e o terceiro porque o preço é abusivo. Goleada. É só ter paciência e escolher bem, pensa você. Então você é designado para trabalhar em outro Estado. Casa, apartamento ou hotel?
É claro que você pode recusar a designação e ser mandado embora do emprego. Vale a pena? Você, na verdade, escolhe aceitar a designação. Por sua espontânea vontade ou porque não tem escolha? Jogo empatado.
Eu poderia ir até o fim da página mostrando alternativas e os possíveis desdobramentos de cada escolha. Cito, porém, um caso concreto: quando jovem, eu pretendia ser engenheiro, não sei bem por que. Meu pai, que era um rábula de primeira, convenceu-me a fazer Direito. Fiz e cheguei aonde cheguei. Onde ficou a tal “vocação”?
A vida é uma somatória de circunstâncias. O Faeco, que depois se tornou ministro do STJ, era filho de juiz e solteirão convicto. O pai levou os familiares para um congresso de magistrados, o que também foi feito por outros juízes paulistas. O Raphael conheceu a Solange, engataram um namoro e deu no que deu. Você certamente terá algum caso semelhante para contar.
Quando se fala em “predestinação” é como se se pretendesse excluir nossa responsabilidade pela escolha feita. É karma, destino, maktub. Quem escolheu foram as deusas do destino. Quem eram elas? As Fatalidades, deusas que supervisionavam o destino das pessoas. Os gregos antigos referiam-se a elas como Moirai, ao passo que a mitologia romana chamava-as de Parcas.
Quando Freud adotou a figura mitológica de Édipo para tentar explicar a relação psicologicamente incestuosa entre mãe e filho, que ele tinha em mente? Quem foi Édipo?  
Relembremos. Esse não era o nome do guri, mas seu apelido. Laio era o rei da cidade de Tebas, na Grécia. Sua mulher, Jocasta, engravidou e o oráculo de Apolo informou-lhe que a criança que estava para nascer mataria o próprio pai. Temeroso do terrível do vaticínio, Laio decidiu livrar-se do filho logo que este nasceu. Assim, entregou-o a um pastor para que lhe desse sumiço. Já naquele tempo havia pastores de todo tipo. O bom homem (lembram-se da Branca de Neve?), em lugar de matá-lo, amarrou-lhe os pés e pendurou o garoto em uma árvore com a cabeça para baixo. Os vagidos da criança atraíram a atenção de um pastor de Corinto, cidade não muito distante de Tebas, que a socorreu e entregou aos reis de seu país, Pólibo e Mérope, que, como não tinham filhos, resolveram adotar a criança, que passaram a chamar de Édipo, por causa dos pés inchados decorrentes da posição em que ficara pendurado na árvore.
Pausa para reflexão: veja que os fatos acima sugerem tanto a presença da decisão pessoal como da predestinação.
Édipo cresceu como príncipe de Corinto, ignorando sua verdadeira origem, como é comum fazer-se com os filhos adotados. Certa vez, já adulto, como bom filho mimado, teve um desentendimento com um bêbado em uma festa, pois este havia lançado a suspeita de não ser ele filho legítimo dos reis de Corinto. In vino veritas, lembra? Decidido a esclarecer a questão, Édipo viajou para Delfos, a fim de consultar o oráculo. A resposta que obteve foi surpreendente: ele estava destinado a assassinar o pai e casar-se com a própria mãe, tal como fora dito a seus pais naturais. Horrorizado e acreditando que o oráculo se referisse a seus pais adotivos, decidiu o jovem nunca mais retornar a Corinto. Seguindo pela estrada, chegou a uma encruzilhada, onde se deparou com uma carruagem, cujo ocupante exigiu que ele se colocasse à margem da estrada para deixar a carruagem passar. Édipo recusou-se e seguiu-se uma briga entre ambos, durante a qual ele matou seu opoente, sem saber que se tratava de Laio, seu pai.
Morto o rei, assumiu o trono seu cunhado, Creonte, irmão de Jocasta. Quando chegou a Tebas, Édipo foi desafiado pela Esfinge, monstro com cabeça de mulher, corpo de leão e asas de águia, que propunha enigmas aos viajantes, devorando aqueles que não conseguissem resolvê-los. O enigma então apresentado, hoje famoso, foi este: Qual é o ser que tem quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à noite?
Enquanto você pensa na resposta, pensemos.
É claro que o autor da história era fã da predestinação, algo como “do destino ninguém foge”, nome bom pra telenovela.
Se você não matou a charada, fê-lo nosso herói: o Homem anda de quatro na infância, com as duas pernas na maturidade e, pobre de nós, nos arrastamos na sua velhice, apoiados numa bengala. Diz a lenda que, derrotada pelo esperto Édipo, a Esfinge arrojou-se do alto de um rochedo. Como prêmio, Édipo foi sagrado rei de Tebas. Sendo Jocasta uma viúva de boa aparência, casou-se com ela, não apenas para efeitos políticos, tanto que tiveram filhos: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismena, ótimas sugestões de nomes para teus rebentos, prezada leitora.
A vida prosseguiu e Tebas foi assaltada por uma peste que, segundo o oráculo de Delfos, era uma maldição pelo assassinato de Laio. O rei amaldiçoa o criminoso desconhecido, que, segundo lhe diz Tirésias, o confiável adivinho de plantão, era ele mesmo. Jocasta, ao tomar conhecimento do incesto em que vivia, enforca-se. Seu marido, numa autopunição muito simbólica, arranca os próprios olhos, passando a perambular sem rumo.
Que que o Sigismundo viu nessa história para escolher seu personagem como símbolo de alguma coisa?
Se consideramos que tanto Laio como Édipo procuraram evitar que a predição se consumasse, sem êxito, concluiremos que o livre arbítrio cede diante do destino previamente traçado pelas Parcas. O pastor, à sua vez, esteve diante de uma opção: matar ou não matar a criança. Escolheu não matar. Pólibo e Mérope tiveram a oportunidade de ficar ou não com a criança, adotando-a ou não. Ficaram com ela e a adotaram. Por fim, diante da revelação de haver cometido incesto inconsciente, Jocasta tinha a liberdade de romper o casamento e tornar-se freira trapista, representante comercial ou capa da Playboy. Preferiu o suicídio. Que que as Parcas tiveram a ver com isso? Quanto ao Édipo, no primeiro capítulo da história, limitara-se a defender-se de um rei prepotente que nem se deu o trabalho de perguntar ao forasteiro “sabe com quem está falando?” No capítulo seguinte, diante daquela viúva alegre, fez o que qualquer um faria, como o Plácido Domingo: dar-lhe-ia uma cantada (clique aqui).
O próprio Freud foi vítima de sua predestinação. De fato, quando ele nasceu, um anjo torto pousou na guarda do berço e disse: “Vai, Sig, só pensar naquilo durante a vida”. Em lugar de discorrer sobre o castigo terrível e descabido imposto por Édipo a si mesmo, ainda que fosse absolutamente inocente do incesto de que seu draconiano superego o acusava, preferiu dedicar-se ao inocente romance entre mãe e filho, generalizando a coisa a mais não poder. Dizem alguns fofoqueiros que essa generalização tinha como explicação uma idéia que atormentava o Sig: “É verdade que eu cobiço minha mãe, mas não sou o único”. Isso é o destino de todos os homens. Ir às últimas conseqüências? Isso é coisa do livre arbítrio.

19 outubro 2012

A galinha


 
"O criador do conto é o próprio Homem, na sua necessidade de fazer o mundo ter sentido, em sua necessidade de narrar a vida para si mesmo. Se você argumentar 'mas nós não estamos discutindo a forma literária chamada Conto?' eu vou responder: 'mas como você define Literatura? Especialmente quando você considera a expressão literatura oral, a partir da qual, eu diria, o Conto nasceu?'. Tal é a confusão que surge quando se lida com esta ininteligível criatura".
Frank Delaney, Irish Short Stories, Introduction

 
A galinha da Clarice (clique aqui) passeava calmamente no telhado do sobrado. Era uma galinha gorda, penas pintalgadas, dessas galinhas que alimentamos durante meses e que são sacrificadas às vésperas de um dia especial, desde que as crianças a ela não se tenham afeiçoado, vindo então a implorar que à ave se lhe dê destino outro que não a panela que a ela estava desde sempre destinada.

Não era tampouco como a galinha do Virgílio (clique aqui) digo-o desde logo, para que dúvidas não haja.

Imagine uma galinha daquelas ali, posta por alguém que nada mais tivesse para fazer e houvesse dado a si o trabalho de galgar o telhado, a caminhar cuidadosamente de telha a telha, sempre no prenúncio de que uma delas se partisse, como é das estatísticas, a criar a necessidade de ser substituída, não me vá a chuva por ali cair sobre o teto e surgirem goteiras na sala de visitas ou, muito pior, num dos quartos da casa. O que, à sua vez, criaria a necessidade de alguém, talvez ele mesmo, o desastrado autor do dano, ali voltar ao telhado, trazendo consigo nova telha para substituir a que se partira na vez anterior. A criar-se novo risco de novas telhas partirem-se, a criar-se a necessidade de alguém ali retornar, talvez ele mesmo, para substituí-las e assim repetir-se essa lenga-lenga ad infinitum.
 
Era, em súmula, uma galinha de carne, osso e penas.

As pessoas que se dignavam de olhar para cima, com o risco de meterem o pé em algum buraco da calçada, abrindo uma das mãos, que levavam perpendicularmente à testa, à maneira de um aparador que lhes toldasse os possíveis efeitos dos raios solares incidentes sobre os olhos atrevidos, indagavam-se o que fazia aquela galinha naquele local. Alheia a tais comentários, talvez por falta de orelhas ou em razão da distância, a galinha da Clarice caminhava lentamente, como é próprio dos galináceos, dobrando, sucessivamente, cada perna, até porque, se dobrasse ambas ao mesmo tempo, não andaria, sentaria.

E caminhava para diante, mesmo porque galinhas não dão marcha-a-ré. Aceleram, quando se faz necessário, como se um galo no diuturno cio com ela cisme e manda a pudicícia galinácea que ela se faça de rogada e não aceite desde logo a corte, pondo-se a correr em círculo, sempre a ser seguida e perseguida pelo galo que a todos deseja mostrar quem é que manda no terreiro. E lá longe, alheia aos olhos curiosos e pudicos dos presentes, ela se dignará de abaixar-se, para que ele a monte e depois, sexualmente satisfeito, dela desça e faça um rodopio, como se dissesse "de que te valeu correr tanto?" E ela então se levantará e se sacudirá toda, espadanando as penas, como a querer eliminar delas todos os vestígios do natural ato que acaba de praticar, sabe-se lá se voluntariamente ou não.

Mas ali, no alto do telhado da casa, não havia porque nem como correr em círculo, até porque galo algum ali subiria apenas para dar vazão à libido, presumindo-se ajam os galos com prudência mínima.

Pois à medida que a galinha da Clarice, não a do Virgílio, ressalvo segunda vez, dobrava a perna, o que fazia lentamente, como é próprio das galinhas desde o início dos tempos, se permitido for fazer uma tal suposição, ela também lentamente recolhia os magros dedos, dada a evidente inutilidade de mantê-los empalmados, como a dar adeus a fantasmas. Mas, à medida que a perna voltava, também com lentidão, a esticar-se, os magérrimos dedos iam-se afastando uns dos outros, como a formar, mecanicamente, uma esquelética flor, que ela exibia a ninguém.

Enquanto caminhava pelo telhado, valendo-se daquele caminho natural formado pelo encontro das telhas que vinham de um lado e de outro, da direita e da esquerda, unindo-se ali, naquele cocuruto, e casadas uma a outra por outro tipo diferenciado de telha, dita telha de arremate, a galinha da Clarice olhava, também sucessivamente, à direita e à esquerda, como se aguardasse aplausos ante o seu atrevimento de, menos votada ao vôo como tantos de seus parentes distantes, passear atrevidamente a tantos metros do solo. Galinha pensa?

Lá embaixo, alguns desocupados ou, talvez, preocupados com a possível extinção da espécie, acompanhavam aquela marcha da galinha, algo digno de soldados vietnamitas em parada militar. E ela alheia a tudo e a todos, sabe-se lá se ainda tem mãe, a qual certamente aflita estaria, se existente, ante aquele despropósito galináceo.

Eis que dois pombos, não mais do que dois, assentam-se no alto do telhado, naquela espécie de coluna vertebral que a maioria dos telhados apresenta, ali posta, não para suster costelas, mas para dividir o telhado em duas águas, como diz o vulgo, até porque a galinha da Clarisse passeava caminhando exatamente ao longo daquela longa e falsa coluna vertebral.

Que faz ela, ante a inesperada visita? Que fazem essas duas aves cá no alto, uma delas a girar em círculo sem sair do lugar? Pasma, a galinha da Clarice simplesmente sustém o passo, mantendo a perna dobrada e os dedos recolhidos, como é próprio dessas aves em tais momentos de indecisão. Que quer esse casal postado em meu caminho? há de ter pensado a galinha, se aceitarmos que as galinhas de fato pensam, minúsculo que seja seu cérebro, como sabemos todos nós. Ou haverá quem se tenha refestelado a comer cérebro de galinha, tal como se come os de boi ou de vaca, ditos eufemicamente miolos?

O fato é que essa vacilação galinácea custou-lhe a ela a vida, pois o rapaz da casa surgiu num átimo de segundo, essa fração de tempo imedível, e a agarrou por uma das asas, levando-a, por mais que ela resistisse, para a casa, onde, não havendo crianças nem tendo ela botado ovo nenhum, mataram-na, preparam-na à cabidela, comeram-na com quiabo e arroz branco.
E passaram-se anos. Muitos e muitos anos.
 
 

14 outubro 2012

O caso José Dirceu



A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém.” (Decreto n. 678, de 06 de Novembro de 1992, art° 1°)

“Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.” (Pacto de São José da Costa Rica, art° 8°, 2, h)

 
            Sabe-se que a Constituição Federal contempla aquilo que os leigos chamam de “foro privilegiado”, ao dizer, no art° 102, letras b e c, que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar, “nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República”, bem como “nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente”. Estranho privilégio, pois tais réus não contam com a garantia do duplo grau de jurisdição, o que faz de tal disposição lei de interpretação restritiva, como é de todo curial. 
 
         Como também é sabido, quando do início do julgamento do já famoso processo 470, que cuida do chamado “mensalão”, modo bem brasileiro de simplificar conceitos mediante apelidos, um dos réus, que não se enquadra em qualquer das hipóteses acima referidas, apresentou “exceção de incompetência”, que veio a ser rejeitada pela maioria da Corte, por fundamentos ainda não tornados públicos, mas relacionados com a “conexão de causas”, uma vez que, cuidando-se de mais de 30 réus e cerca de 5 crimes diferentes, alguns dos quais cometidos por associação de agentes, o juízo especial atrai todos os processos conexos, sob pena de decisões conflitantes para fatos idênticos, o que não condiz com o prestígio da Justiça. Demais disso, certos crimes, como o de “quadrilha” e de “branqueamento de capital”, consta terem sido cometidos por congressistas e não congressistas em associação. Imagine-se, por exemplo, a formação de uma quadrilha, que, de acordo com a lei, deve ter pelo menos quatro membros. Se a tal quadrilha de que cuida a denúncia tiver cinco membros, sendo dois deles congressistas e três não congressistas, caso haja a divisão do processo, para que apenas os congressistas sejam julgados pelo STF por formação de quadrilha, estará descaracterizado tal crime, pois nem aquele tribunal pode levar em conta réus cuja conduta está sendo apreciada pelo juízo de primeiro grau, nem o juízo de primeiro grau pode levar em conta a conduta dos membros da quadrilha que estão sendo julgados no STF. Assim, muito embora a lei não ressalve o fato excepcional, a Suprema Corte, no legítimo exercício de sua jurisdição, resolveu o impasse, dando-se excepcionalmente por competente para julgar pessoas não enquadráveis no art° 102 da Magna Carta. Roma locuta causa finita.
Um dos condenados, porém, teria manifestado o propósito de dirigir-se a algum tribunal internacional, para ver reconhecido o seu direito ao duplo grau de jurisdição. Em razão disso, juristas eméritos têm-se manifestado sobre essa possibilidade, dentre os quais Carlos Velloso e Luiz Flávio Gomes, em resposta à indagação “A Corte da OEA pode interferir na decisão do STF sobre o mensalão?”, feita pelo jornal Folha de S.Paulo, edição de 13 do corrente, na seção Tendências e Debates.
Enquanto o ex-ministro do Supremo Tribunal opta pela resposta negativa, o jurista de São Paulo sustenta o seu cabimento.
Diz Velloso: “O entendimento de que o Pacto de São José da Costa Rica, nos art°s 8, h, e 25, obrigaria os Estados a prover, no caso, o duplo grau de jurisdição, constituiria interpretação extensiva da Convenção. A doutrina internacional, porém, adota, de regra, a interpretação restritiva dos tratados, principalmente quando a interpretação extensiva tiver como conseqüência limitações à soberania estatal ou a submissão do Estado a uma jurisdição internacional, arbitral ou permanente”.
O contrário diz Flávio Gomes: “No caso Barreto Leiva contra Venezuela, a Corte, em decisão de 17 de novembro de 2009, apresentou duas surpresas. A primeira é que fez valer em toda sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição; a segunda é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo tribunal máximo do país, em razão de foro especial”.
E que tem dito o nosso Tribunal Máximo sobre tal tema?
No julgamento da Medida Cautelar em Habeas Corpus n° 109.544/BA, julgado em 09 de Outubro de 2011, o ministro relator Celso de Mello, decano da Casa e constitucionalista respeitadíssimo, faz referência a outro julgamento daquela Corte. “Cabe registrar”, disse ele, importantíssima decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 22/11/2005, no julgamento do ‘Caso Palamara Iribarne vs. Chile’, em que se determinou, à República do Chile, dentre outras providencias, que ajustasse, em prazo razoável, o seu ordenamento interno aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar.” E continua: “Mais do que isso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Sentença proferida no ‘Caso Palamara Iribarne vs. Chile’, determinou que a República do Chile estabelecesse, em sua legislação interna, limites à competência material e pessoal dos Tribunais militares, em ordem a que, ‘en ninguna circunstancia un civil se vea sometido a la jurisdicción de los tribunales penales militares'”.
Seria interessante conhecermos o caso referido, para concluirmos se tem ou não pertinência aqui. Por falta de espaço, remetemos o leitor ao site, onde matará a curiosidade.
O fato relevante é que, como diz Regina Ingrid Díaz Tolosa, da Pontifícia Universidade Católica do Chile, em artigo publicado na Revista Chilena de Derecho, vol. 34, 2007, “nos parece curioso que una causa que comienza con la demanda de declaración de responsabilidad del Estado de Chile por la violación de la libertad de pensamiento y de expresión y el derecho de propiedad, consagrados en los artículos 13 y 21 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, termine con la condena al Estado de adecuar, en un plazo razonable, el ordenamiento jurídico interno a los estándares internacionales respecto a la legislación sobre jurisdicción penal militar, como forma de reparación.”
Imaginemos que o “Caso José Dirceu”, como elegantemente poderíamos referir-nos ao processo 470, fosse submetido à mesma Corte Internacional e por ela julgado. Qual poderia ser o conteúdo de tal decisão? Quais seus efeitos práticos?
Cançado Trindade, jurista brasileiro internacionalmente respeitado e juiz daquela Corte Interamericana, fez incluir na decisão do “Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, que pode ser lida no site, seu aplauso a ela. Disse ele então: Hace años vengo sosteniendo, en el seno de esta Corte, mi entendimiento en el sentido del amplio alcance de los deberes generales de protección consignados en los artículos 1 y 2 de la Convención Americana. A mi juicio, no se viola la Convención Americana solamente y en la medida en que se violó un derecho específico por ella protegido, sino también cuando se deja de cumplir uno de los deberes generales (artículos 1 y 2) en élla estipulados. Así, el deber general del artículo 1 de la Convención - de respetar y hacer respetar, sin discriminación alguna, los derechos por élla protegidos - es mucho más que un simple accesorio de las disposiciones atinentes a los derechos convencionalmente consagrados, tomados uno a uno, individualmente; es un deber general que se impone a los Estados Partes y que abarca el conjunto de los derechos protegidos por la Convención”.
Diz ele ainda: “Tal como me permití señalar en mi Voto Disidente en el caso El Amparo (Interpretación de Sentencia, 1997), referente a Venezuela, ‘Un Estado puede (...) tener su responsabilidad internacional comprometida, a mi modo de ver, por la simple aprobación y promulgación de una ley en desarmonía con sus obligaciones convencionales internacionales de protección, o por la no-adecuación de su derecho interno para asegurar el fiel cumplimiento de tales obligaciones, o por la no-adopción de la legislación necesaria para dar cumplimiento a éstas últimas. Es llegado el tiempo de dar precisión al alcance de las obligaciones legislativas de los Estados Partes en tratados de derechos humanos. El tempus commisi delicti es, en mi entendimiento, el de la aprobación y promulgación de una ley que, per se, por su propia existencia, y su aplicabilidad, afecta los derechos humanos protegidos (...), sin que sea necesario esperar por la aplicación subsiguiente de esta ley, generando un daño adicional. El Estado en cuestión debe remediar prontamente tal situación, pues, si no lo hace, puede configurarse una situación continuada violatoria de los derechos humanos (...). Es perfectamente posible concebir una situación legislativa contraria a las obligaciones internacionales de un determinado Estado (v.g., manteniendo uma legislación contraria a las obligaciones convencionales de protección de los derechos humanos, o no adoptando la legislación requerida para dar efecto a tales obligaciones en el derecho interno). En este caso, el tempus commisi delicti se extendería de modo a cubrir todo el período en que las leyes nacionales permanecieron en conflicto con lãs obligaciones convencionales internacionales de protección, acarreando la obligación adicional de reparar los sucesivos daños resultantes de tal `situación continuada' durante todo el período en aprecio" (párrs. 22-23).”
E remata: “Por consiguiente, en la medida que el Estado no armonice integralmente la normativa de derecho interno con los estándares internacionales de la Convención Americana, y deje de cumplir con el deber general de respetar y asegurar el respeto de los derechos convencionalmente protegidos, incurre en violaciones adicionales de los artículos 1 y 2 de la Convención. Siendo así, en el presente caso Palamara Iribarne, el Estado chileno ha violado y continúa violando las obligaciones generales establecidas en los artículos 1 y 2 de la Convención Americana, en la medida en que estaban vigentes en el momento en que ocurrieron los hechos del presente caso y continúan vigentes en la actualidad, normas de derecho interno que no son acordes con los estándares internacionales de protección de los derechos humanos establecidos em dichos artículos de la Convención Americana.”
Uma pergunta: tendo a Constituição atual entrado em vigor em 1988 e havendo o Pacto de São José da Costa Rica sido incorporado ao nosso Direito positivo, sem qualquer ressalva, em 1992, qual o alcance, entre nós, do art° 8°, 2, h, do Pacto? Prevalecerá ele sobre a Constituiição, que lhe é anterior?
Disse o Min. Celso de Mello, relator do pedido de Extradição n° 662-2/República do Peru, julgado em 28 de Novembro de 1996: “Sabemos todos que tratados e convenções internacionais – tendo-se presente o sistema jurídico vigente no país – guardam estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias.
Com efeito, os atos internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se no mesmo plano de validade e eficácia das normas infraconstitucionais. Essa visão do tema foi prestigiada em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE n° 80.004/SE (RTJ 83/809, rel. o Min. Cunha Peixoto), quando se consagrou entre nós a tese – até hoje prevalecente na jurisprudência da Corte – de que existe, entre tratados internacionais e leis internas brasileiras, mera relação de paridade normativa.
É certo que já se registra no plano do direito comparado uma clara tendência no sentido de os ordenamentos constitucionais dos diversos países conferirem primazia jurídica aos tratados e atos internacionais sobre as leis internas. É o que ocorre na Argentina, Holanda, Federação Russa, Holanda, Paraguai e França. Tal, porém, não ocorre no Brasill, seja por efeito de ausência de previsão constitucional seja em virtude de orientação firmada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por mais de uma vez, reconheceu – como precedentemente assinalado – que os atos internacionais situam-se, após sua formal incorporação ao sistema positivo doméstico, no mesmo plano  de autoridade e de eficácia das leis internas.”
Se assim deve ser quando se esteja diante de eventual conflito entre tratado e mera lei interna, quando se cuide de disposições diferentes sobre o mesmo tema constantes de tratado e da Constituição (como entre lei interna e Constituição) dúvida não pode haver de que não se pode falar em conflito, mas tão somente em prevalência da Constituição, Lei das Leis.
Como disse o sempre citado Ministro Celso de Mello, agora como relator da Ação Direta de Inconstitionalidade n° 1.480-3, julgada em 04 de Setembro de 1997, “no sistema jurídico brasileiro os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em consequência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política.
O exercício do treaty-making power pelo Estado brasileiro – não obstante o polêmico art° 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação perante o Congresso Nacional) – está sujeito à necessária observância das limitações jurídicas impostas pelo texto constitucional”.
E conclui ele: “O primado da Constituição, no sistema jurídico brasileiro, é oponível ao princípio pacta sunt servanda, inexistindo, por isso mesmo, no direito positivo nacional, o problema da concorrência entre tratados internacionais e a Lei Fundamental da República, cuja suprema autoridade normativa deverá sempre prevalecer sobre os atos de direito internacional público”.
Tal decisão, no entanto, é anterior à Emenda Constitucional n° 45, que, acrescentando o parágrafo 3° ao art° 5° da nossa Magna Carta, equiparou os tratados sobre direitos humanos a emendas constitucionais, se forem aprovados pelo Congresso Nacional com observância de quorum qualificado. Tal parágrafo aplicar-se-ia a tratados entrados em vigor em data anterior à dele?