29 novembro 2013

A morte do jurista


"A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que iria construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.
- Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe que estava com desejos, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura."  - Machado de Assis, "O Alienista"

O Machado foi-se, mas deixou-nos sua afiada ironia. Relendo a narrativa sobre a benemérita obra do doutor Simão Bacamarte e sua casa amarela, ocorreu-me falar sobre um personagem raro, que não sei se ficaria dentro ou fora dela. Ele era jurista, especializado, evidentemente, em anatocismo, coisa que fazia com a mais absoluta correção. Vivia brigando com a esposa, que era médica. Eram, já se vê, litisconsortes ativos, sendo ela facultativa.
Certo dia ele recebeu uma carta de um amigo rogando-lhe que estivesse no dia tal, tantas horas, em tal lugar, sem falta. Atendendo ao contido na carta rogatória, foi ao tal local, onde encontrou a esposa em companhia de um técnico de televisão, que ficava o tempo todo de olho na tela. O amante dela, concluiu ele, era um assistente técnico, que precisava tratar do canal do dente. Agravado em sua honra e perdendo o domínio de si, incapaz de gerir sua pessoa e bens, pegou de uma vara de marmelo e desferiu golpes e mais golpes no adversário com aquele instrumento retido em suas mãos, o que fez dela uma vara criminal.
O estado de saúde da mulher, que já era tão precário como a posse da vara nas mãos dele, agravou-se. Tanto pior para ela, que tinha poucas posses e apelou para a ignorância, encomendando, recurso extraordinário, um despacho num centro da periferia.
Fugindo ele, populares foram buscá-lo e o apreenderam. Se havia um corréu, não foi visto, visto que correu. Eis uma busca e apreensão de alguém bem móvel. Não foi fácil, porque o oficial de Justiça que foi mandado ao local era mudo e não sabia como daria voz de prisão ao suspeito, além de não haver citação do endereço do procurado. Seu irmão, que também era oficial, mas do Exército da Salvação, prontificou-se a ajudá-lo a prender o homem que deveria ser condenado. Ele era um homem culto e, por isso, não lhe foi difícil dar cumprimento ao mandado, que não era longo.
O homem não tinha salvação. Levado a julgamento, o acusado, que era uma figura sinistra, jurou inocência, com a mão direita sobre a Bíblia, pois estava fora de seu juízo. Aquilo deveria ser algum erro de pessoa, justificou-se. "Não júri em falso!" aconselhou o seu advogado, homem mais prudente do que creme dentifrício. A vítima tornara-se assistente do promotor e não perdia uma apresentação dele, excelente pianista. Um dia, batendo palmas, ela torceu o pulso, mas o promotor, que também era curador, deu um jeito naquilo e ela ficou boa, completamente curada. Cura tão perfeita que nenhum procurador do Estado descobriria onde se encontrava a cicatriz. Talvez em Lins, que é o nome abreviado da cidade de Lugar Incerto e Não Sabido, onde, como sabemos, nasceu o escritor Mário Prata, que atualmente se homizia, com todo o ouro obtido na venda de seus livros, em Santa Catarina, em companhia da esposa, que ali se mulherzia.
O réu foi condenado a pelar um pacto em dia de ventania e, sem embargo disso, colher-lhe as penas. Disse o juiz: "Leve-as ao promotor, o doutor Sansão", homem conhecedor de todas as penas, que só a muitos custos concordaria com a liberação do condenado. Eis uma pena que certamente não lhe seria leve.
Mesmo depois de cumprida a longa sanção, ele quase não saía de casa, seu amado bem de família, pois aquela reclusão, por tantos anos, acabou por acarretar-lhe prisão de ventre. Como não falasse coisa móvel com coisa móvel, foi internado no manicômio judiciário, onde, fã do Nadal, vivia jogando tênis em quem o visitasse.
Era louco por jogo. Sempre que chegava o homem do correio, jogavam carta. Quando era levado ao fórum, equilibrava-se no corrimão da escada, pois era um perito judicial. Seu companheiro Antonio Cabecel se candidatou a um cargo eletivo e ele participou ativamente da eleição de Cabecel, que venceu por um voto, dado por Minerva, sua esposa, portuguesinha muito severa, que saíra de Lisboa por causa do enfado.
Quando solteiro ele não saía do bar, frequentado, naturalmente, só por advogados norte-americanos. Depois, passou a frequentar a venda da esquina, ponto de jogo do bicho e de possíveis clientes. Sua mulher, no entanto, reprovava tal conduta, pois detestava animais. "Temes Minerva, homem?" indagavam os amigos. "É claro que sim", respondia ele. "Ela não tira os olhos da venda."
Um dia, porém, ele caiu no conto do vigário, que não havia sido escrito pela pena dourada do Mário, e ficou imóvel no solo, carecedor de ação.

O único processo de julgar o extinto foi julgar extinto o processo.


21 novembro 2013

Em terra de cegos


"A verdade libertar-vos-á." (João, 8, 32

Foi numa terra distante. Há muito tempo.Ali havia um estranho e inexplicável fenômeno: todas as pessoas nasciam cegas. Evidentemente, isso decorria de uma graça divina, pois esse feliz atributo evitava que as pessoas vissem tudo o que há de sórdido nas realidades que nos cercam. Nem pobres, nem doentes, nem cadáveres. E tanto era assim que periodicamente eram realizadas cerimônias religiosas, com ação de graças ao bom deus, por haver-lhes dado o maravilhoso dom da vida e por havê-los feito à sua imagem e semelhança (pois o deus deles era cego e justo, tendo na mão direita uma balança, símbolo da ponderação, e na sinistra uma adaga, símbolo da execução, ainda que nos pareça estranho se possa fazer justiça na cegueira).
Prendas riquíssimas eram trazidas de todas as regiões da tribo, para serem ofertadas em tais festividades, cuja freqüência mostrava o elevado espírito religioso daquele nobre e feliz povo, que não regateava o seu dízimo ao responsável pela sua prosperidade.
Deu-se que, certo dia, um dos habitantes daquele longínquo e feliz povoado sofreu um acidente quase fatal. Ou fatal, como também se pode concluir.
Foi assim: encontrava-se ele encarapitado em uma árvore, chamada, por motivos que se desconhece, árvore  da vida, colhendo seus frutos (frutos proibidos, pois a árvore pertencia ao parque público), quando, por ira dos deuses, dali caiu e bateu o crânio em uma pedra. Durante muitas luas ficou ele entre a vida e a morte. Preces fervorosas foram feitas por seus familiares; ervas medicinais foram-lhe ministradas; sacrifícios ofertados em sua intenção; benzimentos e toda sorte de recursos foram utilizados para restituir a saúde ao chefe da família. Tudo inútil.
Certa manhã, contudo, deu-se o inesperado: quando os familiares se encontravam no templo, em adoração, implorando por sua saúde, o acidentado acordou com a saúde recuperada. Um milagre, por certo. Que somente não foi completo em face de uma particularidade, uma pequena sequela daquele lamentável acidente: ele não conseguiu recuperar a cegueira. Por efeito da queda ele havia adquirido o lastimável estigma da visão. O terrível dom de ver. Não te todo, é verdade, mas o bastante para distinguir um pardal de um falcão.
Mal acreditando no sucedido, foi ele ao templo, pois era dia de ação de graças, ocasião propícia ao agradecimento pela saúde restabelecida, parcialmente embora. E momento adequado para fazer penitência, com vistas a recuperar a cegueira perdida.
Andando com muita cautela, desacostumado da perda da vista, dirigiu-se ao templo. No caminho impressionou-se com os resíduos que ia encontrando, o aspecto das moradias, das ruas esburacadas e sujas, em cotejo com o esplender do templo. Entrou. Procurando esconder sua desgraça, mantinha os olhos fechados, como se os demais fiéis pudessem perceber aquele pormenor. Postou-se num canto, muito discretamente, e pôs-se a fazer suas orações, em silêncio, contritamente. Os olhos, porém teimavam em abrir, por mais que se esforçasse por fechá-los. Era uma força invencível, realmente um castigo, uma tentação diabólica. Cedendo, por fim, a ela passou a examinar o que se passava ao seu redor. As pessoas orando com fervor. A certa altura, as ofertas de costume. Prendas preciosas sendo levadas ao altar, em honra ao venerado deus. Uma cerimônia tocante, realmente.
Terminada a liturgia, as pessoas foram saindo, aos magotes, vagarosamente. O pecador permaneceu no templo, para confessar-se de sua desdita a algum sacerdote. Olhos pregados no altar, viu, claramente visto, o chefe da tribo retirar, uma a uma, as oferendas que os fiéis haviam lá entregue. Tocado pela curiosidade, nosso pecador pôs-se a seguir, em silêncio, aquele transporte dos bens que, segundo os regulamentos da tribo, deveriam permanecer no templo. Soube, então, que o chefe e os sacerdotes transportavam para suas casas aqueles bens todos. Ou quase todos, já que os bens menos valiosos permaneciam, de fato, no interior do templo. Os demais, os mais ricos, eram objeto daquele inacreditável descaminho.
Mal refeito do segundo susto, o pecador pôs-se a berrar, convocando toda a tribo par a ágora nativa, a praça fronteira ao templo. Reunidos todos, tomou da palavra, ainda sob forte emoção, e pôs-se a discursar:
Cidadãos: como sabeis bem, encontrava-me eu acamado, em razão de haver pecado contra o nosso deus, tentando provar do fruto da árvore da vida. Pecado de que publicamente me penitencio, mesmo porque acabo de sair do templo, onde participei da cerimônia de expiação.  O que não sabeis ainda é algo que me ocorreu hoje e que desejo contar-lhes aqui publicamente. Hoje, por incrível que isso possa soar, me foi dado aquilo que a nenhum de vós foi dado até hoje. Após tantos e tantos anos de existência de nosso povo, com os dias sucedendo as noites e as noites sucedendo os dias, com nossos sacerdotes vitalícios orientando-nos todos no caminho do bem e da prosperidade, ocorreu-me hoje algo que poderá modificar nossos hábitos, nossa maneira de viver, nossos princípios, nosso futuro.
A impaciência começou a tomar conta dos ouvintes, ante aquela peroração inicial. Aonde pretenderia chegar? Comentários aqui e ali, tentativas de adivinhação. Apostas (era um povo amante das apostas que realizavam por tudo e por nada).
O orador concluiu secamente, como se desse uma estocada final: foi-me dado o poder de ver.
Um surdo alarido percorreu os ouvintes. Uma onda que ia e vinha, cruzando-se de todos os lados. Como é ver? Diga-nos lá o que é isso? Alguns mostravam-se claramente céticos. Descreve-nos o encontro das árvores com as nuvens do céu. Quão diversa é a curiosidade humana! Como é o rosto do nosso deus? Fala-nos da diferença entre o cão e o pássaro.
A impaciência tomava conta de todos. O homem os examinava um a um, satisfeito com a reação que as suas palavras estavam provocando. Por fim, prosseguiu:
Pouco teria a dizer-vos quanto a isso. A visão não mostra o coração do cão, que pulsa tal como o coração da ave. Se as árvores não tocam no céu é porque ainda não cresceram o bastante. Penso que o rosto de nosso deus não é visível com estes olhos. Isso seria procura inútil. Quero-vos contar algo mais relevante, mais precioso, mais fundamental do que isso. Quero-vos falar de uma visão que tive dentro de nosso templo e que pode modificar nossa vida e nosso futuro.
Os sacerdotes sempre narravam casos de santos que, iluminados por seu deus, haviam tido visões interiores. A partir dessas visões, a fé era incrementada, pois um povo que tivesse alguém assim abençoado por deus era um povo deveras feliz. O orador por certo falaria agora de suas visões religiosas.
Fale-nos, fale-nos, pediram ansiosos.
E o homem falou.
Como sabem todos, periodicamente se realizam cerimônias para aplacar as iras do nosso deus. Cada um de nós tem trazido, ao longo de nossas vidas, os nossos bens mais preciosos, nossas oferendas mais caras para ofertá-los, em holocausto, ao nosso amado criador. Sempre me perguntei qual seria o tamanho do depósito de nosso templo, para que ali coubesse tudo o que temos trazido. Hoje, quando me encontrava no templo, maravilhado com as ofertas que todos fizemos, obtive, por fim, a esperada resposta. E não poderia silenciar em nome da verdade, escolhido que fui pelo nosso criador - estou certo disso agora - para ver o que vi.
O silêncio era total. Podia-se ouvir o farfalhar das asas do pássaro que pulava de uma árvore a outra. A latir distante do cão. O pulsar dos corações inquietos. A respiração de todos.
Vi nosso chefe, nosso maioral, aquele em que depositamos toda nossa mais profunda confiança, vi nosso chefe retirar do templo, juntamente com nossos eternos sacerdotes, as peças mais preciosas, as doações mais valiosas que havíamos depositado no altar. Profanamente, traindo nosso deus e nosso povo, eles transportaram para suas casas aquilo que deveria permanecer no templo.
O murmúrio agora era muito maior. Céticos e ingênuos trocavam palavras ásperas. Durante muitos minutos a multidão se perguntava se poderia crer naquilo que estava ouvindo.
O orador pediu silêncio e continuou.
Sugiro, pois, que se forme uma comissão de cidadãos, dentre os mais respeitáveis, que irá investigar aquilo que acabo de narra. É irmos agora à casa deles e comprovar o que aqui lhes digo. Provado isso, deveremos julgar nossos representantes, aqueles que deveriam fazer de nossos dons coisa sagrada, para depô-los e para que outros, mais dignos e menos ambiciosos, ocupem seus lugares, cumprindo o que lhes toca.
Novo murmúrio, logo interrompido pela palavra do chefe da tribo.
Cidadãos, ouvi em silêncio, como todos vós, a acusação que nos acaba de ser feita. Era o que me competia, pois a cada um, como bem sabeis, é dada a liberdade de expressar-se, garantia máxima de nossa comunidade. Mas a todos também é dado o direito de defender-se, quando acusado. É o que faço neste momento.
Fez uma pausa, procurando estabelecer um hiato entre a palavra do outro e seus futuros argumento. 
Todos sabem também que nosso povo tem o dom excepcional da cegueira. Graça divina que reiteradamente temos agradecido ao nosso criador. Benesse que nos trouxe a felicidade suprema de não vermos os andrajos de um mendigo, nem o rosto de um ancião, nem o desfazimento de um cadáver, nem o lixo de nossas ruas. Sabemos de sua existência, mas pela graça de nosso deus, não vemos. Não ver o insolúvel é já evitar preocupação inútil. Podemos, assim, olhar para dentro de nós mesmos e aí descobrirmos tudo o que há de bom e de belo em nós mesmos. Descobrirmos lá dentro, no nosso âmago, aquele pedaço de deus que ali existe. Quando existe. Frisou bem a última afirmativa.
As pessoas voltaram-se o rosto, expressando um sorriso que não passou despercebido ao denunciante. Era como se todos sorrissem para ele. Ou rissem dele, não sabia bem.
O chefe continuou.
Qual dentre vós alguma vez sentiu-se mal olhando para dentro de si? Quem dentre vós alguma vez lamentou não ter olhos para ver o lixo, o cadáver, a velhice? Pois bem. Agora aparece no meio de nós alguém que nos diz ter visto. Confessadamente ele provou do fruto proibido, foi castigado por nosso deus e, depois disso, adquiriu o poder de ver. Viu o céu separado das árvores, viu o cão igual ao pássaro. Ele viu, segundo nos diz. Ora, senhores, diante de tal afirmação somente podemos concluir que estamos diante de uma verdade ou diante de uma mentira.
A lógica da conclusão era inarredável e levou o auditório a não reparar na falsidade das premissas. As conseqüências imediatas do sofisma não foram percebidas desse modo pelo denunciante, que tudo acompanhava em respeitoso silêncio, como convinha e era norma.
O orador prosseguiu.
Aceitemos que ele está a falar verdade. Ele realmente viu. Nesse caso, este homem é um maldito, um amaldiçoado por deus, que nos fez todos à sua imagem e semelhança. Se nosso deus não fosse cego, algum de nós teria a salvação eterna? Se ele visse todos os nossos pecados, quem de nós teria a salvação? A cegueira de nosso deus é a nossa esperança, amados irmãos. Como ter fé em um deus que tudo vê e que tudo sabe? Como esconder-se dele? Como amá-lo plenamente se somos imperfeitos e, por definição, temos a impossibilidade de amá-lo tal como ele merece ser amado? Só sua cegueira nos salva! Como é possível, pois, que um homem, feito à imagem e semelhança de nosso deus cego, seja mais do que ele é?  Se é verdade que este homem vê, ele é um réprobo, cuja presença entre nós somente poderá significar provocação às iras de nosso bom, porém justo, deus. É um novo lúcifer, que se supõe ser dotado de mais luz do que quem lhe deu à luz e lhe deu a luz! Saboreou, vaidosamente, o jogo de palavras que, sabia-o muito bem, pouquíssimos ali teriam percebido.
O denunciante percebeu a movimentação das pessoas, que se puseram a formar um círculo de ferro em torno dele. Via-lhes a expressão inamistosa, demonstrando que suas palavras já haviam caído no limbo do esquecimento. As palavras do chefe, contudo, continuavam a martelar os ouvidos da multidão. Ele concluiu o raciocínio de forma fulminante, como quem dá um xeque-mate:
A não ser assim, este homem mentiu. E mentiu no propósito inequívoco de semear a discórdia entre nós, no seio de nossa feliz comunidade, quebrando a serenidade e a paz social de que todos desfrutamos, em nossa santa cegueira. O objetivo desse pecador é a nossa cizânia.  Tertium non datur, sentenciou, em remate o orador.
As palmas que o denunciante esperava não vieram. Em lugar disso, um sólido silêncio. Mas eles já haviam feito seu julgamento. O círculo de ferro foi-se fechando sobre o denunciante, que jamais pensaria em tentar fugir. 
Se este homem é um maldito de deus, ou se este homem é um subversivo, pouco importa. O que é certo e verdadeiro, tão verdade como a cegueira de nosso deus, é que ele não pode mais continuar entre nós.
E mais não disse. O círculo fechou-se de vez. Ali mesmo na ágora o povo executou o maldito, linchando-o. Como se não tivessem pecados, apedrejaram-no até a morte. Depois, seu corpo foi esquartejado. As postas foram deixadas apodrecendo ao sol, para que o cheiro servisse de advertência aos incautos.


14 novembro 2013

Dos plágios involuntários


Plagium, entre os romanos, significava apropriar-se de escravo alheio. Hoje em dia pode-se dizer que plágio significa “ganhar o pão com o suor do rosto alheio”. Já tive oportunidade de discorrer sobre plágios, reais ou supostos, inclusive os meus, e aparentemente eu não teria motivo para voltar ao tema.
Confesso, porém, que o assunto me parece sempre atual e surgiu uma oportunidade de ouro que eu não gostaria de descartar. Até porque, como já ocorreu outras vezes, eu não digo nada sobre determinada questão, aí vem alguém e diz tudo aquilo que eu havia pensado em dizer mas não disse e eu terei dificuldade em me perdoar pelo meu silêncio, especialmente se quem escreveu antes de mim for aplaudido por sua originalidade. O sucesso alheio dói, como diria qualquer pessoa que fosse honesta com seus sentimentos.
Aliás, talvez até alguém já tenha escrito sobre isso e sobre aquilo que vou escrever e eu, involuntariamente, o estarei plagiando, adotando, como adotei, o estilo Woody Allen de resmungar. Assim é a vida.
Veja se não é.
Você acha que entende de cinema? Então me diga que filme é este: um rapaz pobretão mas bem apessoado conhece uma moça riquíssima que, além dessa nada desprezível qualidade, tem outra, também nada desprezível, pois é belíssima. E ela acaba apaixonando-se por ele. Quer enredo melhor? O problema é que ele tem uma noiva, que está grávida e exige que ele assuma a paternidade do filho comum. A família da ricaça certamente não vai gostar disso e ele então resolve dar um fim no problema, eliminando a namorada. Que filme é esse?
Se você é fã de Woody Allen, certamente respondeu que esse filme é “Match Point”, cujo personagem masculino principal é um tenista. A expressão se refere ao ponto que pode decidir uma partida, donde o filme haver-se chamado no Brasil “Ponto Final”, expressão obviamente ambígua, que o Woody, se soubesse português, certamente aplaudiria. Os tenistas conhecem bem a importância da rede que divide a quadra. Ela tem atuação tão marcante nos jogos que há uma tradição: quando o ponto é conseguido graças ao desvio da bola que toca a rede, o ganhador do ponto pede desculpas ao adversário por essa lamentável colaboração. Lamentável para quem perde, é claro. Por vezes, a bola bate na rede e, em lugar de cair do outro lado, cai do lado onde está seu arremessador. Há no filme uma cena que lembra isso e que terá enorme importância na trama: o assassino atira a aliança da noiva defunta no mar, mas ela, tocando numa mureta, cai do lado de cá, o que significa que a polícia, pelo nome que está na aliança, chegará até o noivo. Ou não.
Acontece que eu falava de outro filme: “Um Lugar ao Sol”, onde o pobretão era interpretado pelo problemático ator Montgomery Clift. A belíssima ricaça era ninguém menos do que a deslumbrante Elizabeth Taylor, por quem, aliás, o Monty era apaixonado, mas jamais teve coragem de assumir isso, talvez por suas tendências homossexuais. Em 1951, época em que George Stevens dirigiu esse filme, a regra era “ajoelhou tem de rezar”. Que fazer, então, com a namorada grávida para fugir do necessário casamento? Levá-la para um passeio de barco, do qual ela não mais voltaria.
Veja os dois filmes e veja se o Woody Allen, cinéfilo como ele só, poderia desconhecer essa trama, embora adapte a história à moral cínica dos tempos presentes.
Pois em livro escrito por Eric Lax, biógrafo de Woody Allen, que reuniu na obra 36 anos de conversas com o cineasta, Allen fala sobre “elaboração de roteiros, formação de elenco e representação, filmagem e direção, montagem e escolha da música”, mas em nenhum momento nem o entrevistado nem o entrevistador fazem referência ao filme de 1951.
Como o Woody Allen diz que tem uma gaveta repleta de papeizinhos nos quais ele anota, diariamente, idéias para filmes e contos, aí vai uma boa idéia para um filme: um jovem sul-americano, no final do século XIX, insiste em criar um veículo que consiga flutuar no ar e ser manejado por um piloto. Quando consegue inventar um desses aparelhos, a que dá o nome de aeroplano, ele embarca para os EUA, a fim de mostrar seu evento a alguns capitalistas. Obviamente ele vai de navio. No local onde será feita a demonstração estão quase todos os magnatas, menos um, que está atrasado. Cria-se um suspense que só é quebrado com a chegada do tal ricaço, que ali comparece a bordo de um aeroplano, inventado recentemente por dois irmãos norte-americanos.
Dá ou não dá uma excelente comédia? Imagine o personagem, interpretado, como quase sempre, pelo próprio diretor, andando de um lado para outro, gaguejando e tentando explicar que sua invenção é anterior à dos dois irmãos inventores.


07 novembro 2013

E por que não?


“O deputado federal Paulo Maluf foi condenado nesta segunda-feira (4) no Tribunal de Justiça de São Paulo a pagar uma multa de R$ 42,3 milhões por desvios que ocorreram na construção do túnel Ayrton Senna, entregue à população em 1995.” Dos jornais desta semana
“O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decide nesta semana se abre processo disciplinar contra o presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, Mário Alberto Simões Hirs, e sua antecessora, Telma Laura Silva Britto, acusados de irregularidades que teriam causado prejuízo de R$ 448 milhões aos cofres do Estado.” Dos jornais desta semana

Leio praticamente todos os dias nos jornais que foi realizado ontem aqui, hoje mais ali, um rombo nas contas públicas que rendeu aos autores milhões de reais. Fico imaginando o que eu faria se as minhas condições de saúde me permitissem. Entraria, certamente, numa dessas, acertaria a vida de meus netos, seguindo o manual do Maluf (“Desafio provarem que existe alguma conta em meu nome em algum banco estrangeiro”) e, graças ao nosso Supremo, se algum dia houver alguma condenação definitiva contra mim, minha família entregaria ao juiz de execução um frasco com minhas cinzas. E que faça bom proveito.
Quando transmito essas idéias a alguns amigos e colegas, tão sobreviventes de outros tempos quanto eu, eles fazem uma cara de horror. “E a moral, meu caro? Para que serve a Ética?”
Acabo de ler dois livros muito ilustrativos: são as biografias de Henrique VIII e de sua filha Elizabeth I, a tal que se apelidou “Virgin Queen”, na certa porque não haveria, como jamais houve, quem lá fosse conferir se essa virgindade era real e depois saísse à rua denunciando o engodo. Virgem e namoradeira como ela só. Tudo muito platônico, certamente.
Muito embora a Magna Carta Libertatum, que é de 1.215, impusesse aos soberanos ingleses a obediência ao “devido processo legal” quando se cuidasse de julgar e executar pessoas, nem o rei, que governou de 1.509 a 1.547, quanto ela, sua filha, que ficou mais tempo do que ele no trono, deixavam de enviar para o cepo (nobres não eram enforcados, como ocorria com a gente comum) inúmeros inimigos tão só pela acusação de traição, mesmo quando o plano nem chegava a esboçar-se. Inimigos? Além de duas de suas esposas (Ana Bolena e Catarina Howard), aquele rei mandou decepar a cabeça de seus auxiliares diretos como aquele que todos consideravam seu melhor amigo, Thomas More, homem cultíssimo e de moral ilibada, como se diz em Brasília, e que hoje é conhecido como Santus Thomas Morus; ou Thomas Cromwell, considerado o melhor de seus ministros; e até mesmo um bispo (John Fisher). Elizabeth, que sempre se declarou avessa à pena de morte, moderou com o tempo, é verdade, seus impulsos agressivos. Quando sua prima Mary, que era católica, rainha da Escócia e sua prisioneira, foi acusada por alguns nobres de estar conspirando contra a rainha, para assumir seu lugar, ela argumentou, com base na Magna Carta, que um rei jamais deveria ser julgado na Inglaterra, pois tal autoridade somente poderia sê-lo by his peers, ou seja, por seus pares. Que pares julgaria a rainha da Escócia? Como seus ministros temiam uma revolta dos católicos, um deles, Sir John Davison, redigiu uma ordem de execução e enfiou no meio dos papéis de rotina que a rainha iria assinar sem ler. Resultado: Mary foi decapitada e Sir John proibido para sempre de freqüentar a corte. Milagrosamente, sua vida foi poupada.
Um de seus inúmeros “casos” foi com Robert Dudley, que, no entanto, veio a casar-se com outra mulher, o que enfureceu sobremaneira a rainha. Pois o casal teve um filho, Robert Devereux, que se tornou conde de Essex. Nada obstante a diferença de idades, ela convocou o conde para ser seu auxiliar direto, encarregando-o de cuidar de sua montaria. Ele, porém, preferia farrear (com outras) e, nas horas de folga, participar de alguma batalha, que, ou se gabava de haver ganho, ou acusava seus homens de haverem fracassado. Quando ele foi advertido pela rainha, saiu pelas ruas gritando que estava sendo injustiçado pela rainha a quem tanto servira. Um escândalo.
Resultado: com seu enfant gaté desmandando-se publicamente, não restou a ela alternativa: mandar julgá-lo por traição, quando foi condenado à morte. Ele tinha 35 anos e ela quase 70. Além de ter de suportar o notório desprezo que o rapaz lhe dedicava, além dos abusos por ele cometidos, certo de que seria por ela perdoado, mandar decapitá-lo foi demais até para ela, que caiu em enorme prostração e morreu dois anos depois daquela execução.
E a ética britânica como ficou?
É claro que os tempos agora são outros. Hoje os futuros reis da Inglaterra estudam e trabalham quase como os filhos de famílias comuns (famílias abonadas, é claro). O mais recente candidato a rei foi batizado sem praticamente pompa alguma, depois de ser fotografado saindo prosaicamente da maternidade no colo da mãe. Só faltou a família ir para casa de taxi. Evidentemente, não se chegou a isso por passe de mágica, mas ao longo de um penoso processo de aprimoramento das normas de convivência.
Nossa ética judaico-cristã chegou a tal ponto que nem a paciência do Papa Francisco suportou certos desmandos. Quantos papas foram necessários para que alguém se lembrasse do sermão da montanha?
O pensador polonês Zygmunt Bauman, autor de inúmeros estudos sobre a chamada “Ética pós-moderna”, nome, aliás, de um de seus inúmeros livros, indaga: a ética realmente morreu ou se ainda existe, sendo apenas necessário que seus grandes temas sejam revistos e tratados de modo inteiramente novo?
Como pode ser isso?
Confesso que não consigo distinguir muito bem isso de “modernismo” e “pós-modernismo”. Na realidade, o chamado modernismo, no campo da Ética, tem muito a ver com o fenômeno que muitos pensadores chamam de “a morte de Deus”, para designar um período em que as religiões tradicionais já não são levadas a sério como outrora. Se prestarmos atenção tanto no Código Hamurabi, como nas Tábuas da Lei quanto nos chamados Dez Mandamentos, veremos ali claramente o objetivo de regrar a vida social das pessoas, ainda que sob a ameaça do castigo divino. Ausente Deus, quem fiscalizará os homens?
Com o ser humano descendo à condição de um primata superior, é para perguntar onde encontrará ele base para definir sua vida ética.
Bauman lembra que outrora a escolha era entre duas afirmações opostas: “os seres humanos são essencialmente bons e apenas precisam de ajuda para agir segundo sua natureza” e “os seres humanos são essencialmente maus e devem ser prevenidos de agir segundo seus impulsos”. Certamente, no primeiro time jogava A.S. Neill, criador do Colégio Summerhill, onde as crianças eram deixadas livres, para serem elas mesmas, segundo seu refrão. Já o velho Freud certamente não aprovaria isso. Não se deve cogitar da repressão total das tendências agressivas do homem. O que podemos tentar é canalizar essas tendências para outra atividade que não seja a guerra” teria dito ele.
O que caracteriza os tempos atuais, diz o professor polonês, é a liberdade generalizada dos costumes. Veja-se, digo eu, o que se passa no campo da sexualidade, que sempre foi visitado pelos moralistas, até mesmo nos mandamentos “de Deus”. Algo visto como um mal necessário. Hoje em dia, nesse campo simplesmente não há padrão de conduta.
Veja-se o que ocorreu com o casamento. É ele tipicamente uma celebração religiosa. O “crescei e multiplicai-vos” sugere que o par deve ter sexos diversos. Caso contrário, como multiplicar? O Estado, no entanto, apropriou-se indevidamente do nome para batizar com ele um contrato civil de convivência, que poderíamos chamar de “união heteroafetiva”. Paralelamente, a homossexualidade, que, de atividade criminosa, como soube Oscar Wilde, tornou-se aceita e até mesmo incentivada, com direito a paradas coloridas pelas ruas das capitais, adquiriu status simplesmente impensável, ao ver a união homoafetiva, ou seja, o disciplinamento do contrato civil que liga duas pessoas do mesmo sexo, elevado a celebração religiosa, equiparável ao casamento. Não se trata de desmerecer esse tipo de união, que, como contrato, deve, de fato, ser regulamentado pelo Estado. O que é abusivo é esse mesmo Estado, que prometeu respeitar os credos religiosos, aproveitar-se de um instituto tão importante que os católicos o reputam um sacramento, para dar-lhe conotações que extrapolam do modelo original.
Falar do campo político é o mesmo que enxugar gelo. Nenhum candidato, por mais inexpressivo que seja o cargo eletivo almejado por ele, ganhará durante o seu mandado honorários que compensarão minimamente o que ele gastou para eleger-se. Se essa premissa é inquestionável, como de fato é, dela deveremos retirar suas naturais conseqüências, uma das quais sendo: que capitalista se disporá a financiar a campanha de algum desses candidatos se não tiver em mente recuperar o que gastou, elevado a algumas potências? Não é, por certo, coincidência, que os maiores financiadores de campanhas eleitorais sejam as grandes empreiteiras, as quais, após a eleição, saem vencedoras de concorrências que, nem sempre, se destacam pela lisura.
Estamos, de fato, vivendo um clima de liberdade individual como jamais houve, o que, no limite, leva a um individualismo generalizado. E como fica a ética se, como diz Umberto Eco, ela surge quando eu descubro o outro, aquele que é diferente de mim? Por outro lado, as mil formas da globalização condicionam essas pessoas livres a seguirem um mesmo figurino, por vezes imperceptivelmente. Nem as crianças escapam disso, pois as meninas, por exemplo, têm a liberdade de escolher entre vários modelos de uma mesma boneca. Para não falarmos nos joguinhos eletrônicos e na transformação do telefone celular e as bugigangas nele encartadas em artigo de extrema necessidade. Liberdade?
Daí dizer Bauman, citando Erich Fromm: “Em nosso esforço de escapar da solidão e impotência, estamos dispostos a nos livrar do nosso eu individual, quer por submissão a novas formas de autoridade, quer por conformação compulsiva a padrões aceitos”.


01 novembro 2013

Românticos




A criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou. Mas hoje, vendo que o que sou é nada, quero ir buscar quem fui lá onde ficou.” (Fernando Pessoa)

Tenho um amigo que vive a reclamar que as editoras não se interessam pela publicação de livros de novos autores, logo ele que deu a um de seus livros um nome invejável: “Do amor e outras fraudes”. Um achado! Como diz o Luís Fernando Veríssimo, para publicar um livro só é necessária uma coisa: ser autor famoso. Pois tenho uma notícia ausvissareira para dar-lhe meu caro, para oficializar a oportuna palavra que ouvi dias destes, híbrido que me não parece de má origem. Coisa que o nosso colega Guimarães Rosa certamente avalizaria.
Conheci numa dessas feiras de livros, que eu e você costumamos frequentar, a simpática proprietária de uma editora sediada no Rio de Janeiro. Num casamento de egípcio e latim, escolheu ela o nome da novel empresa, que você encontrará na Internet, com uma relação de livros de poesia editados por eles. Sim, meu caro amigo: poesia! O site nos informa que Íbis era a ave cuja cabeça encimava o corpo do deus Thot, criador do alfabeto e padroeiro da literatura. Nosso padroeiro, portanto.
Como o site não indica o endereço eletrônico do departamento de distribuição dos livros, sou informado pela direção que eles apenas editam o livro. Distribuição serão outros mil e quinhentos. Isso, porém, não constituirá obstáculo capaz de desanimá-lo, se eu bem o conheço.
Tive uma tia que vendia um produto de casa em casa. Ela saía pelas ruas de seu bairro, com um carrinho de feira, carregando aqueles frasconetes de lactobacilos, que é como aquilo se qualificava, se não me falha a já falível memória. Tocava a campainha da casa e repetia o mesmo refrão, dias e dias. “Vende muito disso, tia?” Ela, com seu sotaque italianado, dizia alguma coisa que eu mal compreendia, talvez palavrão, e continuava a cantarolar alguma música do Carlo Gardel, como ela pronunciava, talvez fosse ele algum cantor italiano, e não o francês Charles Gardès. O produto era fabricado pelos japoneses, segundo ela me explicava, e tinha tais e quais efeitos, que eu, menino ainda, não entendia muito bem. O que sei é que os japoneses, com essa mania de imitar os norte-americanos, acabaram acabando com o ganha-pão da minha tia Nena, pois em lugar de o seu produto ser vendido um a um de casa em casa, passou a ser exposto, em pacotes de dúzia, nas geladeiras dos supermercados. ¡Siglo veinte, cambalache problemático y febril! Cantarolaria tia Nena.
Sou também do tempo do “Ding, dong. Avon chama!” Lembra? Pergunte à mãe da tua mãe. Era um lactobacilo preocupado com a parte de fora do corpo. O rádio e a televisão incipiente nos pediam que fôssemos atenciosos para com a “moça do Avon”. Se ela apertar a campainha de tua casa, mande a moça entrar, sirva um copo d’água, um cafezinho e, se possível, compre o produto que ela está vendendo. Era o reverso da história: os norte-americanos agora a adotar o sistema nipônico de vender de porta em porta. Imagino isso hoje, quando os porteiros do prédio são orientados a conferir as individuais datiloscópicas de quem nos procura, se haveria como servir água ou cafezinho à tal moça. Vá a gente saber se aquilo não é coisa do PCC.
Outra invenção dos norte-americanos era a venda de umas panelas de plástico, se posso dizer assim, também oferecidas de casa em casa. Criava-se no bairro uma espécie de irmandade do bem e as senhoras, geralmente tão desocupadas enquanto os maridos davam duro no chamado trabalho e enquanto a televisão não se tornasse a coisa insuportável que se tornou, passariam a fazer algo de útil, que lhes proporcionaria algum trocado para o batom ou o rouge, se é que a senhorita que me lê sabe do que estou falando. Havia um curso preparatório que deveria ser uma autêntica lavagem cerebral, tal era a modificação operada nas que o freqüentavam. Você ia a uma missa de sétimo dia e lá estava uma amiga pronta a conversar sobre o tal produto, falando, baixinho é claro, das maravilhas da tal quinquilharia. Se você se encontrasse com ela na feira, ou na padaria, ou na quitanda, era tiro e queda: a tal vendedora parecia esses moços neo-convertidos que, de Bíblia na mão, vêm nos teus calcanhares com o refrão “convertei-vos!”. Pois os vendedores das tais panelas de plástico tinham esse mesmo tipo de comportamento. Descobri que o chefe deles utilizava do mesmo sistema de avaliação e incentivo utilizado pela turma do A.A.: à medida que você atingisse um número de vendas por mês, recebia um bottom de outra cor. E todos eles se cruzando com seus invejáveis bottons coloridos na lapela, como se vender panelas de plástico fosse tão meritório como livrar-se do álcool.
Pois hoje não mais nos propõem vendermos lactobacilos, nem panelas de plástico, nem creme anti-rugas, nrm suplemento alimentar. O que a modernidade nos propõe é que saiamos por aí, a empurrar carrinho de feira pelas calçadas arrebentadas que temos em nossa infeliz cidade, desviando-nos dos cocôs de vários tamanhos e formas que os cachorrinhos de madames e cavalheiros se encarregam de espalhar por todo canto dia e noite, a oferecermos, de porta em porta, nossos livros de poesia.
Sonhador que sou, vejo meu prezado amigo a oferecer o produto falando naquele bocal que nos aguarda na parede das casas. Tenho aqui um “lânguidas lágrimas de serena face/ que jorrais suaves por meu rosto gasto...” Ou então tenho um mais alegre: “cômodos lazeres/ placidez ebúrnea/ cômodos prazeres/ sensatez ausente ...”
Aliás, ia me esquecendo, o site da mesma editora nos recorda que Íbis era um dos muitos falsos nomes de que se valia o nosso tímido colega Fernando Pessoa, este sendo o apelido quando enviava cartas de amor à sua amada Ofélia Queiroz. Lembrança mais do que oportuna, pois o nosso Fernando António Nogueira Pessoa, que se escondia sob vários disfarces, como Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares, o do Livro do Desassossego, também tinham lá seus problemas para distribuir seus poéticos livros.
Consta que nossa colega Cecília Meireles, tendo ido a Portugal, para proferir conferências na Universidade de Coimbra, desejou conhecer o poeta de quem se tinha tornado admiradora e que talvez precisasse de uma mãozinha brasileira. Marcou um encontro com os heterônomos todos, que se daria ao meio-dia na praça onde hoje lá está ele sentado, mesmos óculos, mesmo chapéu, mesma gravata e mesmo terno, agora tudo isso brônzeo. Ela esperou até as duas da tarde, tempo mais do que suficiente para que o Fernando reunisse todos eles e lá fossem todos. Cansada de esperar, Cecília voltou ao hotel e ali encontrou um exemplar do livro Mensagem e um recado do poeta: não havia comparecido porque, consultando os astros, soubera que os signos dela não combinavam com o de nenhum dos seus heterônomos. E os astros tinham toda razão: não houve mais encontro algum, mesmo porque no ano seguinte o Fernando Pessoa faleceu.
E, se isso te consola, só em 1982 foi publicada a edição definitiva do Livro do Desassossego, que o nosso colega lusitano havia escrito durante a vida, é claro, que se findou, como sabeis, em 1935, quando nascias.
Tudo muito romântico, como vês.